A história é a seguinte https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br Contamos por que todo passado é presente Tue, 10 Aug 2021 12:55:04 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Trabalho qualificado também marcou escravidão no Brasil https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/02/11/efeitos-da-escravidao-brasileira/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/02/11/efeitos-da-escravidao-brasileira/#respond Thu, 11 Feb 2021 13:00:58 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/escravos_máquinas_1-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=461 O estudo dos efeitos do sistema escravista sobre africanos e descendentes mantidos sob a opressão do cativeiro faz parte de uma tradição bem estabelecida no Brasil. Curiosamente, a tendência da literatura foi enfatizar mais aspectos psicológicos e morais do que a realidade vivida pelos escravizados.

Os poucos autores do século 19 que atentaram para questões como saúde, alimentação, integridade física, qualificações ou mortalidade elevada dos escravos geralmente o fizeram em obras destinadas a orientar os proprietários sobre a produção e o trabalho nas fazendas, como por exemplo Carlos Augusto Taunay, em Manual do Agricultor Brazileiro (2a edição, 1839), Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, em Memoria sobre a Fundação e Costeio de uma Fazenda na Provincia do Rio de Janeiro (3a edição, 1878; 1a edição em 1847) e Antonio Caetano da Fonseca, no seu Manual do Agricultor dos Generos Alimenticios (1863).

Mais comuns entre os autores foram opiniões sobre a psicologia, a moral e as atitudes dos escravos em relação à família e a outros aspectos da vida social e econômica. Essa tendência continuou nos estudos das ciências sociais no século 20.

A ausência de dados sobre a realidade nas fazendas não impediu que vários desses autores, antigos e mais recentes, especulassem sobre as capacidades e atitudes dos escravos em relação ao trabalho, seja durante a escravidão ou após a abolição em 1888. Mesmo quando existiam informações mais detalhadas, como as do censo demográfico de 1872 ou de testemunhos valiosos de viajantes contemporâneos, o habitual foi que ideias arraigadas prevalecessem ou pelo menos diminuíssem a disposição de buscar evidências que conflitassem com o senso comum.

Um exemplo é Perdigão Malheiro, que em sua obra A Escravidão no Brasil. Ensaio Historico-Juridico-Social, publicada em 1866 e 1867 (3 volumes), analisou em profundidade as ideologias, as leis e o sistema de exploração do trabalho de escravos no Brasil em comparação com outras regiões das Américas. O autor não demonstrou dúvida a certa altura de seu livro em considerar o escravizado como um indivíduo “tão inteligente como qualquer outro; dotado de qualidades estimáveis, coragem, paciência, resignação, sobriedade; capaz de todo aperfeiçoamento intelectual e moral, próprios da natureza humana.”

No mesmo livro, porém, ao refletir sobre a proposta de abolição da instituição escravista que ele defendia em tese como uma necessidade vital, Perdigão Malheiro alegou que o fim imediato do sistema seria “absolutamente inadmissível na atualidade”. Além da “desorganização do trabalho e da produção”, da ameaça à “riqueza pública e privada”, da “desordem nas famílias” e do ataque “à ordem pública”, o autor dizia que a abolição imediata seria danosa aos próprios escravos. A capacidade de “aperfeiçoamento intelectual e moral” antes citada foi esquecida e Perdigão Malheiro só enxergou a “vagabundagem, os vícios, o crime, a prisão, a devassidão, a miséria, eis a sorte que naturalmente… esperaria” os escravos se alcançassem a liberdade naquele momento.

A visão negativa das habilidades e capacidades dos escravizados foi compartilhada e difundiu-se no século 20 mesmo entre as ciências sociais. Para Florestan Fernandes, em A Integracão do Negro na Sociedade de Classes (1964), ex-escravos após a abolição teriam se autoexcluído do mercado de trabalho regular como uma expressão de liberdade e dignidade, atitude que sob as novas condições de um mercado competitivo conduziu “seus agentes humanos pelo plano inclinado da miséria, da corrupção e do desalento coletivo”.

Sobre as habilidades de trabalho dos ex-escravos e seus descendentes, Florestan Fernandes recorreu a algumas entrevistas para concluir que “eram raros os negros que tinham profissão, como pedreiro, carpinteiro, barbeiro, alfaiate, sapateiro. Eram profissões difíceis e os negrinhos aprendizes tinham dificuldade em conseguir colocação”.

Celso Furtado foi outro autor clássico que adotou uma visão semelhante, em sua Formação Econômica do Brasil (1959): “Cabe tão somente lembrar que o reduzido desenvolvimento mental da população submetida à escravidão provocará a segregação parcial desta após a abolição”, agravada pela sua “forte preferência pelo ócio”.

As evidências históricas, no entanto, dão pouco crédito às opiniões negativas desses autores. Historiadores como Manolo Florentino & José Roberto Góes e Carlos Lima, utilizando inventários post-mortem e outras fontes, já demonstraram há tempos que escravos exerciam profissões qualificadas em número expressivo em áreas rurais e urbanas.

Outras fontes até mais acessíveis do que inventários trazem evidências ainda mais claras. O recenseamento demográfico de 1872, o primeiro de âmbito nacional do Brasil independente, é um exemplo. Além de conter informações como idade, cor, religião e estado civil da população de comarcas e províncias de todo país, o censo de 1872 registrou as ocupações de livres e escravos em mais de 20 categorias de trabalho, de empregados públicos e trabalhadores agrícolas a operários e serviços domésticos.

Uma das categorias da classificação ocupacional do censo de 1872 reuniu o trabalho manual mais qualificado e valorizado no século 19: o dos “operários”, parte das chamadas “profissões manuais ou mecânicas” do recenseamento. Essa categoria abrangia o trabalho geralmente de natureza artesanal, que exigia longo período de aprendizado, destreza e habilidade. Ocupações como as de carpinteiro, ferreiro, alfaiate, sapateiro e mecânico recebiam, portanto, maior remuneração no mercado de trabalho livre e valorizavam os escravos que as executavam.

A título de exemplo, entre os maiores de 10 anos de ambos os sexos, a província de São Paulo possuía 485.632 e 127.467 trabalhadores livres e escravos, respectivamente, em todos seus municípios em 1872. Desses totais, 4,6% eram trabalhadores artesãos livres e 4,3% eram artesãos escravos. Isto é, uma proporção praticamente idêntica de livres e escravos exercia ocupações qualificadas, que exigiam habilidades especiais, experiência e autonomia na atividade do trabalho.

A capacidade intelectual e de aprendizado dos escravos foi testada no ambiente mais hostil e violento do trabalho sob cativeiro, como de fato havia sugerido Perdigão Malheiro em 1867. Se após a Abolição, ex-escravos e descendentes enfrentaram obstáculos e desigualdade, como evidentemente ocorreu e com consequências visíveis até hoje, as causas não devem ser atribuídas às suas atitudes ou características individuais.

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Acesso a documentos digitais revoluciona pesquisa histórica https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/26/acesso-a-documentos-digitais-revoluciona-pesquisa-historica/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/26/acesso-a-documentos-digitais-revoluciona-pesquisa-historica/#respond Sat, 26 Dec 2020 13:00:19 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/photo_2020-12-25_19-38-34-300x213.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=170 Documentos digitalizados têm revolucionado a pesquisa histórica nos últimos anos. Um exemplo já bem conhecido no Brasil é a Hemeroteca Digital, um inestimável serviço da Biblioteca Nacional que traz o acervo de jornais fundamentais para o estudo dos eventos políticos, sociais e econômicos da história brasileira, como o Correio Paulistano e o Jornal do Commercio. Recentemente, o Diário de Pernambuco, considerado o jornal mais antigo (desde 7 de novembro de 1825) em circulação da América Latina, também foi incorporado à Hemeroteca.

Há várias outras iniciativas igualmente importantes. Muitas fontes que eram o sonho de pesquisadores, como por exemplo os Anais da Câmara dos Deputados e do Senado (Império e República), podem ser acessadas agora facilmente em suas edições originais. Nessas publicações da Câmara e do Senado encontram-se todos os personagens, debates, políticas e legislações que passaram por essas casas legislativas desde 1823. São informações e dados que precisam ser consultados em qualquer tentativa de ir além de generalizações superficiais em não poucos temas da história brasileira.

Da mesma forma, as Instruções e Circulares da Sumoc (Superintendência da Moeda e do Crédito), no site do Banco Central, são uma fonte básica para reconstituir a complicada história da principal política econômica (a cambial) no Brasil entre 1945 e 1965. Outra referência valiosa para a análise da economia do período do pós-guerra, e que é curiosamente subutilizada hoje em dia, é a revista Conjuntura Econômica da FGV, uma publicação mensal que é chave para acompanhar a política econômica e os dados da economia brasileira, sobretudo de 1947 à década de 1980. A coleção completa da Conjuntura Econômica está disponível em um site que permite, além do mais, a busca por palavras-chave em várias edições combinadas.

Há ainda preciosidades como as bibliotecas digitais de “Obras Raras” do Senado, da Câmara e do STF, bem como a Coleção Brasiliana da antiga Companhia Editora Nacional, digitalizada pela UFRJ. Outro exemplo é a Biblioteca Básica Brasileira, idealizada por Darcy Ribeiro e que foi abordada neste blog por Hanna Manente. Essas coleções reúnem livros de autores muitas vezes esquecidos, mas que continuam necessários para se investigar temas políticos, econômicos e sociais da colônia, do século XIX e da primeira metade do século XX no Brasil.

Em diversos casos, as obras dessas coleções que começaram a ser organizadas na década de 1930 permanecem entre as principais referências para o estudo da sociedade brasileira. Apenas para citar exemplos relacionados à história econômica, em três assuntos diferentes: João de Azevedo Carneiro Maia, O Municipio. Estudos sobre Administração Local (1883); Augusto Olympio Viveiros de CastroTratado dos Impostos. Estudo Theorico e Pratico (1910) e João Pandiá Calógeras, A Política Monetária do Brasil (1910). A digitalização e o amplo acesso de livros como esses podem ajudar a reduzir a tendência da historiografia recente de negligenciar obras fundamentais pela sua idade.

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Darcy Ribeiro e a Biblioteca Básica Brasileira https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/23/darcy-ribeiro-e-a-biblioteca-basica-brasileira/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/23/darcy-ribeiro-e-a-biblioteca-basica-brasileira/#respond Wed, 23 Dec 2020 13:10:46 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/6115950ba29d7dd1d9e4652dce5ea371-gpLarge-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=94 Pode ser que para muitos a incógnita Brasil seja relativamente recente. Como explicar o país; quem são os brasileiros; o que pensam; do que vivem? A busca pela elusiva identidade nacional, no entanto, foi, e continua sendo, um dos grandes alicerces das nossas ciências sociais. Marco desta busca foram as imponentes coleções editadas a partir de 1931, tal qual a Coleção Brasiliana publicada pela Companhia Editora Nacional (e digitalizada pelo Projeto Brasiliana Eletrônica), e a Coleção Documentos Brasileiros editada pela Livraria José Olympio Editora.

Os quase cem anos de investigação produziram grandes intérpretes, perpetuaram mitos e introduziram ainda mais dúvidas. Parte do problema, eu diria, provém da dificuldade de impor uma interpretação a um objeto que se desconhece. Como se teoriza uma identidade nacional, sem uma nação que se entende como tal?

No início da década de 1960, provavelmente movido por ideias similares, Darcy Ribeiro, então reitor da UNB, idealizou o projeto Biblioteca Básica Brasileira (BBB). A intenção do antropólogo era publicar e distribuir gratuitamente para escolas e bibliotecas públicas obras clássicas que pensam e problematizam aspectos da história e da identidade brasileira. O intuito não era apresentar uma resposta monolítica sobre o ‘ser Brasil’, mas oferecer uma gama de interpretações e possibilidades. A identidade, tanto individual quanto coletiva, não seria imposta, mas construída.

O golpe de 64, para infortúnio dos que acreditam em educação transformadora, pôs fim à Biblioteca cívica de Darcy Ribeiro. Felizmente, após um hiato de 50 anos, o projeto foi retomado e reformulado pela Fundação Darcy Ribeiro. Em 2014, com apoio da Lei de Inventivo à Cultura/Lei Rouanet, os primeiros 50 títulos da coleção BBB foram publicados. De “Viagem ao Brasil” de Hans Staden –relato de um viajante alemão nos idos 1500s— ao clássico “Os sertões” de Euclides da Cunha, todos os volumes podem ser acessados gratuitamente no site da Fundação.

A seleção não é perfeita. Faltam nomes clássicos da historiografia como Raymundo Faoro e Sérgio Buarque de Holanda. Faltam também nomes que deveriam ser clássicos, mas ainda não são, como Carolina Maria de Jesus. Ainda assim, para aqueles que se pegam tentando entender o que parece ser inteligível, é um ótimo começo.

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