A história é a seguinte https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br Contamos por que todo passado é presente Tue, 10 Aug 2021 12:55:04 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 As ruínas de que o Ocidente brotou https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/05/12/as-ruinas-de-que-o-ocidente-brotou/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/05/12/as-ruinas-de-que-o-ocidente-brotou/#respond Wed, 12 May 2021 13:15:07 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/Varna_blog_3240px-Grave_43_Varna_Archaeology_Museum_36755886415-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=596 Walter Scheidel, pesquisador de história antiga da Universidade Stanford, publicou há algumas semanas um curto ensaio na revista aeon em que sublinha o papel decisivo do esfacelamento do Império Romano para o sucesso do Ocidente séculos depois. Confira o tamanho da provocação e do exercício de imaginação histórica:

“Se o Império Romano tivesse persistido, ou sido sucedido por uma potência acachapante similar, nós estaríamos com toda a probabilidade ainda arando os nossos campos, a maioria vivendo na pobreza e amiúde morrendo jovens. Nosso mundo seria mais previsível, mais estático. Seríamos poupados de parte das tormentas que nos assaltam, do racismo sistêmico e da mudança climática antropogênica à ameaça da guerra termonuclear. Então, novamente, estaríamos às voltas com antigos flagelos –ignorância, doença e necessidade, reis divinos e escravidão. Em vez da Covid-19, estaríamos enfrentando a varíola e a peste sem a medicina moderna.”

Scheidel tem uma notável sequência de publicações sobre demografia, economia, poder e aspectos comparativos de sociedades antigas. Num trabalho de 2009 com o colega Steven Friesen, procurou estimar o tamanho do que poderíamos chamar de classe média no apogeu do Império Romano, em meados do século 2, quando se calcula que 70 milhões de pessoas viviam sob o jugo da potência do Mediterrâneo.

Foi com o livro “The Great Leveller” [a grande niveladora], de 2017, que Scheidel se tornou mais conhecido fora do circuito dos classicistas. A versão brasileira, de 2020, preferiu o subtítulo da original —“Violência e História da Desigualdade – da Idade da Pedra ao Século XXI”–, mais elucidativo sobre a ambição das suas mais de 600 páginas.

Em suma, ele argumenta que a desigualdade é prima-irmã do crescimento econômico desde o advento das primeiras sociedades especializadas na agricultura, há cerca de 12 mil anos.

A hierarquia e a concentração de renda, poder e riqueza estão documentadas por exemplo nos achados arqueológicos em Varna, cidade banhada pelo Mar Negro na moderna Bulgária. Uma única tumba, provavelmente de um chefe, acumula mais de 25% de todo o ouro encontrado em mais de 200 covas, numa necrópole que data da Idade do Cobre, cerca de 6.500 anos atrás. A iniquidade na distribuição do ouro naquelas paragens, numa época de avanços da metalurgia, pode ser traduzida num índice de Gini de até 0,77.

E o que reduz a desigualdade? Segundo Scheidel, apenas processos de extrema e ubíqua violência –como epidemias, guerras e revoluções com vasta mobilização populacional, além de implosões do poder estatal– conseguiram reverter a marcha da desigualdade e ainda assim por tempo limitado. O engenho político –a educação, a democracia e as reformas sociais– tem milenarmente falhado na tarefa, segundo o historiador de Stanford.

No ensaio para a aeon, Scheidel acrescenta outro salto interpretativo à sua coleção. A fragmentação duradoura que sucedeu ao colapso da Roma ocidental ajudou a produzir a pujança da região, mas o processo desenvolveu também ameaças e mazelas de outra ordem. É uma palinha de seu livro mais recente (2019), “Escape from Rome: The Failure of Empire and the Road to Prosperity” [fuga de Roma: o fracasso do império e o caminho para a prosperidade].

Não é  original a ideia de que a competição entre pequenas nações vizinhas pouco poderosas, em guerra frequente entre si, favoreceu um certo controle do despotismo, além da inovação e da prosperidade econômica, no oeste europeu. Joel Mokyr, Robert Paul Thomas e Douglass North, entre outros, já haviam explorado essa trilha.

Scheidel talvez o faça com uma dose extra de ceticismo. Se você quer progresso, vai ter de lidar com problemas novos, complicados, que fazem parte do pacote e são de difícil mitigação. Não quer progredir? Então fique com os problemas antigos, que também não eram bolinho.

Não se pode ter tudo. Nunca. Haja espírito de porco!

]]>
0
Trabalho qualificado também marcou escravidão no Brasil https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/02/11/efeitos-da-escravidao-brasileira/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/02/11/efeitos-da-escravidao-brasileira/#respond Thu, 11 Feb 2021 13:00:58 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/escravos_máquinas_1-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=461 O estudo dos efeitos do sistema escravista sobre africanos e descendentes mantidos sob a opressão do cativeiro faz parte de uma tradição bem estabelecida no Brasil. Curiosamente, a tendência da literatura foi enfatizar mais aspectos psicológicos e morais do que a realidade vivida pelos escravizados.

Os poucos autores do século 19 que atentaram para questões como saúde, alimentação, integridade física, qualificações ou mortalidade elevada dos escravos geralmente o fizeram em obras destinadas a orientar os proprietários sobre a produção e o trabalho nas fazendas, como por exemplo Carlos Augusto Taunay, em Manual do Agricultor Brazileiro (2a edição, 1839), Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, em Memoria sobre a Fundação e Costeio de uma Fazenda na Provincia do Rio de Janeiro (3a edição, 1878; 1a edição em 1847) e Antonio Caetano da Fonseca, no seu Manual do Agricultor dos Generos Alimenticios (1863).

Mais comuns entre os autores foram opiniões sobre a psicologia, a moral e as atitudes dos escravos em relação à família e a outros aspectos da vida social e econômica. Essa tendência continuou nos estudos das ciências sociais no século 20.

A ausência de dados sobre a realidade nas fazendas não impediu que vários desses autores, antigos e mais recentes, especulassem sobre as capacidades e atitudes dos escravos em relação ao trabalho, seja durante a escravidão ou após a abolição em 1888. Mesmo quando existiam informações mais detalhadas, como as do censo demográfico de 1872 ou de testemunhos valiosos de viajantes contemporâneos, o habitual foi que ideias arraigadas prevalecessem ou pelo menos diminuíssem a disposição de buscar evidências que conflitassem com o senso comum.

Um exemplo é Perdigão Malheiro, que em sua obra A Escravidão no Brasil. Ensaio Historico-Juridico-Social, publicada em 1866 e 1867 (3 volumes), analisou em profundidade as ideologias, as leis e o sistema de exploração do trabalho de escravos no Brasil em comparação com outras regiões das Américas. O autor não demonstrou dúvida a certa altura de seu livro em considerar o escravizado como um indivíduo “tão inteligente como qualquer outro; dotado de qualidades estimáveis, coragem, paciência, resignação, sobriedade; capaz de todo aperfeiçoamento intelectual e moral, próprios da natureza humana.”

No mesmo livro, porém, ao refletir sobre a proposta de abolição da instituição escravista que ele defendia em tese como uma necessidade vital, Perdigão Malheiro alegou que o fim imediato do sistema seria “absolutamente inadmissível na atualidade”. Além da “desorganização do trabalho e da produção”, da ameaça à “riqueza pública e privada”, da “desordem nas famílias” e do ataque “à ordem pública”, o autor dizia que a abolição imediata seria danosa aos próprios escravos. A capacidade de “aperfeiçoamento intelectual e moral” antes citada foi esquecida e Perdigão Malheiro só enxergou a “vagabundagem, os vícios, o crime, a prisão, a devassidão, a miséria, eis a sorte que naturalmente… esperaria” os escravos se alcançassem a liberdade naquele momento.

A visão negativa das habilidades e capacidades dos escravizados foi compartilhada e difundiu-se no século 20 mesmo entre as ciências sociais. Para Florestan Fernandes, em A Integracão do Negro na Sociedade de Classes (1964), ex-escravos após a abolição teriam se autoexcluído do mercado de trabalho regular como uma expressão de liberdade e dignidade, atitude que sob as novas condições de um mercado competitivo conduziu “seus agentes humanos pelo plano inclinado da miséria, da corrupção e do desalento coletivo”.

Sobre as habilidades de trabalho dos ex-escravos e seus descendentes, Florestan Fernandes recorreu a algumas entrevistas para concluir que “eram raros os negros que tinham profissão, como pedreiro, carpinteiro, barbeiro, alfaiate, sapateiro. Eram profissões difíceis e os negrinhos aprendizes tinham dificuldade em conseguir colocação”.

Celso Furtado foi outro autor clássico que adotou uma visão semelhante, em sua Formação Econômica do Brasil (1959): “Cabe tão somente lembrar que o reduzido desenvolvimento mental da população submetida à escravidão provocará a segregação parcial desta após a abolição”, agravada pela sua “forte preferência pelo ócio”.

As evidências históricas, no entanto, dão pouco crédito às opiniões negativas desses autores. Historiadores como Manolo Florentino & José Roberto Góes e Carlos Lima, utilizando inventários post-mortem e outras fontes, já demonstraram há tempos que escravos exerciam profissões qualificadas em número expressivo em áreas rurais e urbanas.

Outras fontes até mais acessíveis do que inventários trazem evidências ainda mais claras. O recenseamento demográfico de 1872, o primeiro de âmbito nacional do Brasil independente, é um exemplo. Além de conter informações como idade, cor, religião e estado civil da população de comarcas e províncias de todo país, o censo de 1872 registrou as ocupações de livres e escravos em mais de 20 categorias de trabalho, de empregados públicos e trabalhadores agrícolas a operários e serviços domésticos.

Uma das categorias da classificação ocupacional do censo de 1872 reuniu o trabalho manual mais qualificado e valorizado no século 19: o dos “operários”, parte das chamadas “profissões manuais ou mecânicas” do recenseamento. Essa categoria abrangia o trabalho geralmente de natureza artesanal, que exigia longo período de aprendizado, destreza e habilidade. Ocupações como as de carpinteiro, ferreiro, alfaiate, sapateiro e mecânico recebiam, portanto, maior remuneração no mercado de trabalho livre e valorizavam os escravos que as executavam.

A título de exemplo, entre os maiores de 10 anos de ambos os sexos, a província de São Paulo possuía 485.632 e 127.467 trabalhadores livres e escravos, respectivamente, em todos seus municípios em 1872. Desses totais, 4,6% eram trabalhadores artesãos livres e 4,3% eram artesãos escravos. Isto é, uma proporção praticamente idêntica de livres e escravos exercia ocupações qualificadas, que exigiam habilidades especiais, experiência e autonomia na atividade do trabalho.

A capacidade intelectual e de aprendizado dos escravos foi testada no ambiente mais hostil e violento do trabalho sob cativeiro, como de fato havia sugerido Perdigão Malheiro em 1867. Se após a Abolição, ex-escravos e descendentes enfrentaram obstáculos e desigualdade, como evidentemente ocorreu e com consequências visíveis até hoje, as causas não devem ser atribuídas às suas atitudes ou características individuais.

]]>
0
Pobreza, Distribuição e Crescimento: Uma História do Nosso Contrato Social https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/20/pobreza-distribuicao-e-crescimento-uma-historia-do-nosso-contrato-social/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/20/pobreza-distribuicao-e-crescimento-uma-historia-do-nosso-contrato-social/#respond Sun, 20 Dec 2020 20:00:23 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/27-0639M-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=115 com Julia Duó

Durante a administração de Antonio Delfim Netto, ministro da Fazenda entre 1967 e 1974, o Brasil passou pelo chamado “milagre econômico”. Nesse período, mesmo com o PIB crescendo em média 10% ao ano, grupos de baixa renda tiveram seus salários reduzidos e viram sua participação na renda nacional diminuir de mais de 1/6 em 1960 para menos de 1/7 em 1970

Embora o milagre econômico tenha gerado crescimento, o aumento da desigualdade brasileira foi um resultado das políticas econômicas implementadas durante o regime militar. Para Delfim Netto, à época, esse não era um problema. Segundo ele teria dito, o bolo precisava crescer antes de ser repartido. O modelo econômico da ditadura colapsou antes de explicar aos brasileiros quando e como o bolo seria repartido. 

A analogia do bolo que deve crescer antes de pensarmos em repartir-lo não foi inventada por Delfim. Na verdade, esse pensamento econômico teve suas origens no período entre a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial. Na década de 1930, houve níveis crescentes de pobreza nas maiores economias do mundo e a saída dada pelos governos à época foi focar esforços no aumento da produtividade econômica. Essa política foi reforçada pelas demandas militares colocadas pela Segunda Guerra Mundial e os níveis de prosperidade alcançados no pós-guerra pareciam comprovar a eficácia deste modelo econômico. No entanto, já no fim da década de 1950, começou a ficar aparente que, apesar de o bolo ter crescido para alguns, muitos permaneciam sem acesso a ele ou mesmo com acesso desigual a suas fatias. Como medir a crescente pobreza e desigualdade que aumentavam paralelamente à prosperidade nas economias desenvolvidas e nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento?

É nesse momento que o Banco Mundial, organização internacional criada em 1944 em Bretton Woods, começa a adquirir proeminência nos debates sobre pobreza e desigualdade e sobre suas formas de mensuração. É nessa época também que se consolida entre economistas a ideia de que o objetivo deveria ser o de medir pobreza absoluta, ao invés de focarmos em desigualdade e pobreza relativa.

Como mostra o historiador Rob Konkel, a rede de especialistas centrada no Banco Mundial julgava que desigualdade e pobreza relativa tinham dois problemas sérios nas décadas de 1950 e 1960. Em primeiro lugar, eram conceitos difíceis de serem medidos (Como comparar desigualdade entre países? Como definir pobreza relativa para possibilitar sua mensuração? Pobreza relativa nos Estados Unidos teria o mesmo significado que na Índia?). Em segundo lugar, a questão da desigualdade podia ser facilmente politizada, um problema crucial no auge da Guerra Fria. Já a pobreza absoluta se provou de mais fácil mensuração e comparação após o estabelecimento de uma linha internacional da pobreza (definida em USD 1 por dia no World Development Report 1990 do próprio Banco Mundial). 

Apesar do ativismo de grupos divergentes, o protagonismo do Banco Mundial nas décadas de 1960, 1970 e 1980 foi essencial para consolidar a pobreza absoluta como medida de pobreza às custas de pobreza relativa e de preocupações com a distribuição de renda. Para os especialistas dessa época, o conceito de pobreza absoluta não apenas parecia mais simples de medir e de abordar como problema de governança global, mas também estava muito mais alinhado ao discurso de aumento de produtividade doméstica como resposta aos anseios por prosperidade generalizada. 

Foi só recentemente que o Banco mudou de opinião e passou a liderar um esforço para incluir desigualdade na agenda econômica internacional. Isso ocorreu quando começou a ficar cada vez mais claro que países que não conseguem conciliar aumento da produtividade com baixos níveis de desigualdade também não conseguem sustentar trajetórias longas de crescimento econômico e tampouco manter-se politicamente estáveis.

Este foi o destino do modelo econômico dos anos do “milagre econômico”, que acabou entrando em colapso e nos legando uma década perdida nos anos 1980. 

Desde então, nossa sociedade fez algum progresso no combate à desigualdade. Na democratização, tentamos conciliar crescimento e redistribuição com um novo contrato social instaurado na década de 1980, no qual a sociedade brasileira aceitava baixos índices de crescimento econômico em troca de mais redistribuição de renda. 

Na verdade, a sociedade brasileira nunca conseguiu construir um arranjo institucional capaz de conciliar crescimento econômico e redução da desigualdade no longo prazo.  Como resultado, hoje vemos nossas taxas de crescimento estagnadas e a pobreza volta a crescer. Nosso desafio na década que está para começar será construir um contrato social que, pela primeira vez em nossa história, consiga conciliar crescimento e distribuição em direção a uma sociedade mais inclusiva. Enquanto isso não acontece, nossa democracia seguirá incompleta.

]]>
0