A história é a seguinte https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br Contamos por que todo passado é presente Tue, 10 Aug 2021 12:55:04 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A queda de Tenochtitlán e os pesadelos do México de hoje https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/08/10/a-queda-de-tenochtitlan-e-os-pesadelos-do-mexico-de-hoje/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/08/10/a-queda-de-tenochtitlan-e-os-pesadelos-do-mexico-de-hoje/#respond Tue, 10 Aug 2021 11:17:56 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/Tenochtitlan_y_Golfo_de_Mexico_1524-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=680 No próximo dia 13 de agosto, completam-se 500 anos da queda de Tenochtitlán, a cidade habitada mais suntuosa e sofisticada encontrada pelos espanhóis em sua Conquista da América. Naquele dia, no distante ano de 1521, terminou o longo cerco de 73 dias das tropas espanholas à capital do império asteca.

A data será motivo de lançamentos de livros, conferências e encontros que debaterão as distintas linhas de abordagem historiográfica sobre o passado pré-hispânico, a transformação daquele território em colônia europeia e, mais tarde, no México que conhecemos.

Infelizmente, trata-se também de mais um recurso que está sendo usado pelo presidente populista de esquerda Andrés Manuel López Obrador para reafirmar seu projeto de “quarta transformação”. AMLO (como é chamado) crê que seu sexênio como mandatário não é apenas uma gestão democrática corriqueira, e sim um marco histórico apenas comparado à Independência, a Reforma e a Revolução mexicanas.

Uma das coisas que já vem fazendo, usando essa data, é encaminhar um pedido à Espanha para exigir que esta “peça perdão” pela Conquista. Mais um de seus truques para desviar a atenção dos mexicanos sobre os problemas que sua administração enfrenta no terreno sanitário (já são mais de 244 mil mortos para o coronavírus e apenas 21,3% da população totalmente vacinada) e no econômico (queda do PIB de 9,9%).

Mas os 500 anos da invasão e da conquista de Tenochtitlán também serão tema de uma rica programação por parte da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). O calendário de atividades, exposições e conferências pode ser consultado aqui: https://mexico500.unam.mx/

Entre os destaques está a conferência de um dos principais estudiosos do tema, o antropólogo Eduardo Matos Moctezuma, que há anos vem estudando e organizando as recentes descobertas no Templo Mayor, que foi a construção mais importante dos astecas e que está ao lado do Zócalo e que abriga a sede do Executivo mexicano, o Palácio Nacional.

Moctezuma também falará sobre os novos estudos e interpretações do Calendário Asteca, uma das peças de arqueologia mais importantes daquela época, atualmente abrigado pelo museu de antropologia. 

Mas o que fazia de Tenochtitlán uma cidade tão especial?

“Viajante, você chegou à região mais transparente do ar”, escreveu Alfonso Reyes referindo-se ao vale do México e à Tenochtitlán que os conquistadores encontraram no século 16. Localizada numa ilha rodeada pelo lago Texcoco, unida à terra por um complexo sistema de pontes, a cidade maravilhou os integrantes da tropa de 928 soldados espanhóis liderados por Hernán Cortés.

Tenochtitlán era diferente de tudo o que os espanhóis conheciam. O cronista da conquista Bernal Díaz del Castillo assim a descreveu: “desde que vimos tantas cidades e vilas povoadas na água, e na terra firme outras grandes populações, e aquela calçada tão bem desenhada, ficamos admirados, e dizíamos que aquilo se parecia às coisas de encantamento que se contam nas grandes histórias. As enormes torres e edifícios saíam diretamente da água, e alguns de nossos soldados se perguntavam se não estavam sonhando”. A paisagem se completava com dois enormes vulcões, que pareciam proteger a cidade. Para andar pelos canais e lagoas, havia canoas e outras embarcações.

Em termos de população, Tenochtitlán tinha mais habitantes, então, que Paris, Londres ou Roma.

Um dos debates que seria importante que se desse nestes 500 anos de sua queda é o urbano. Não se trata de querer voltar ao passado, mas de formular soluções para que a cidade volte a ter algo da harmonia que havia naquele tempo entre o centro urbano e a natureza. Caída Tenochtitlán, o que a tornava única começou logo a ser atacado. Seus templos e praças foram praticamente destruídos. E o que era um belo sistema de canais interconectados ficou por baixo de uma megalópole construída sem nenhum planejamento. E que, até hoje, convive com o lago debaixo de si em muitas partes.

A Cidade do México atual, superpovoada de modo caótico, vive apoiada e em constante risco num território lodoso e, ainda por cima, dado a terremotos. As últimas ideias românticas de reviver pelo menos parte de seu passado aquático foram sepultadas quando se construiu o anel rodoviário que a circunda e que leva, de um lado a outro da cidade, um mar de carros claramente desproporcional às necessidades da população.

Também estará em discussão o que de fato ocorreu naquela data. Foi uma invasão, um ataque ou uma conquista baseada em traições e intrigas diplomáticas da época, das quais participaram indígenas de outras tribos e uma personagem tão mítica como a Malinche? A indígena que ajudou os conquistadores e está tão presente na obra do Nobel Octavio Paz, ainda falta ser totalmente decifrada.

Afinal, ela agiu movida por amor, vingança ou orgulho? Há distintas interpretações.

Todas essas questões estarão no ar e o melhor que se pode esperar desta efeméride é que elas sejam discutidas pela população e pelos acadêmicos, com rigor científico. E que não sirvam para alimentar uma narrativa populista. Seria importante que, em vez de iludir a população com a ideia de que lidera um novo ciclo histórico, López Obrador colocasse os pés no chão e se dedicasse apenas a governar seu país.

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A estátua na praça do enforcado https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/08/03/a-estatua-na-praca-do-enforcado/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/08/03/a-estatua-na-praca-do-enforcado/#respond Tue, 03 Aug 2021 13:00:46 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/blog_estatua_dpedro_pcatiradentes-300x213.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=669 A praça Tiradentes, no centro do Rio, ostenta uma estátua equestre de Pedro 1º, neto de Maria, a rainha portuguesa responsável pelo enforcamento do inconfidente, naquele mesmo local.

A confusão se desenrola, mas não se desfaz, com as datas. Joaquim José foi executado em 21 de abril 1792. A estátua foi colocada em 1862  pelo segundo Pedro imperador, filho do primeiro. A praça, outrora da Constituição, foi batizada com o nome atual em 1890, logo após a proclamação da República.

O mal-estar já estava instalado na inauguração do monumento, conta José Murilo de Carvalho em “A Formação das Almas” (Cia das Letras). Teófilo Otoni, liberal mineiro, chamou-a de “mentira de bronze”. Panfletos com um poema crítico à homenagem foram apreendidos pela polícia: “Hoje o Brasil se ajoelha/E se ajoelha contrito/Ante a massa de granito/Do Primeiro Imperador!”

Radicais republicanos, que elegeram Tiradentes o primeiro mártir da causa, quiseram se vingar depois que o Império tinha se esfacelado. Em 1893 a ideia deles era comemorar o 21 de abril na praça do alferes enforcado, mas sem o olhar inconveniente do primeiro imperador em seu cavalo. Alguém teve uma ideia: vamos erguer um coreto, um biombo em torno da estátua, e desaparecer com ela para os festejos. A prefeitura, sob Barata Ribeiro, inicialmente colaborou com os planos de ocultar a imagem de pedra. Até sentir o calor da reação.

A ousadia foi considerada tamanha que, na véspera da comemoração, até O Paiz, veículo republicano e governista, reclamou. “Velar, de qualquer forma ou sob qualquer pretexto, uma estátua da ordem da de que se trata é ato desassisado e que pelo menos cobre-nos do epíteto de orgulhosos ignorantes”.

A prefeitura decidiu então desfazer a obra de ocultação dos tiradentistas, mas pelo visto os partidários do imperador montado não botaram fé na boa vontade das autoridades e começaram eles mesmos a quebrar o coreto, o que exigiu a intervenção da força policial. O Paiz, que concordou com o mérito dos queixosos, discordou dos meios: “Nunca aconselharemos o povo aos atos de represália e ao desforço de próprias mãos”.

No dia seguinte, as comemorações do dia de Tiradentes tiveram de ser canceladas.

 

 

 

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O general queria os militares fora do governo https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/07/15/o-general-queria-os-militares-fora-do-governo/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/07/15/o-general-queria-os-militares-fora-do-governo/#respond Thu, 15 Jul 2021 20:20:08 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/revoltaarmadaferrez-300x213.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=658 Em 15 de junho de 1893, o general Frederico Sólon Ribeiro, deputado federal por Mato Grosso, pediu a palavra para encaminhar à apreciação da Câmara o seguinte projeto de lei:

Art. 1º Nenhum militar em atividade poderá exercer cargo algum político, quer de eleição popular, quer de nomeação.

Art. 2º O militar que aceitar cargo de que trata o artigo anterior entende-se ter renunciado à sua patente.

Parágrafo único. A falta de renúncia expressa induz reforma imediata com as vantagens que por lei competirem ao reformado, sem direito ao regresso ao serviço ativo do Exército.

Art. 3º. Excetuam-se, nas disposições do art. 1º, as comissões técnicas e científicas ou diplomáticas previstas por lei.

Frederico Sólon guardava do lendário reformador ateniense apenas o nome, assim como o coronel niteroiense Benjamin Constant não passava de uma sombra quase contraditória do seu célebre homônimo franco-suíço, gigante do liberalismo continental.

Esses oficiais, no entanto, eram o que tinha para o dia no final do século 19, no Rio, e ajudaram a fazer a nossa República na base da força. Enquanto Benjamin disseminava um positivismo intervencionista nas escolas militares, Frederico, ainda major, disseminava desinformação. Ele espalhou a mentira, em 14 de novembro de 1889, de que o gabinete Ouro Preto havia decretado a prisão do marechal Deodoro da Fonseca, de Benjamin Constant e de agitadores republicanos. Foi o estopim para o golpe do dia seguinte.

Em 1893, Sólon, sogro do escritor Euclides da Cunha, estava rompido com o marechal Floriano Peixoto, que assumira, ao arrepio do comando constitucional, a Presidência no final de 1891, após um autogolpe frustrado de Deodoro. À proclamação havia se seguido um avanço voluptuoso de militares sobre postos administrativos, verbas e privilégios federais.

É nesse contexto que o general Sólon Ribeiro apresenta o projeto de lei para acabar com a farra. Dez dias depois de pedir passagem à proposta na Câmara, ele justificou a iniciativa num artigo ao Jornal do Commercio:

“A história está repleta de Exércitos liberticidas que, sobretudo após as grandes reformas sociais, têm sempre a parte do leão em todos os despojos; faltava-lhe o exemplo de um Exército procurando espontaneamente o império nobilitador da lei, abdicando ambições fáceis de serem realizadas e às quais se presta admiravelmente toda a perturbação que lavra por este país. (…) O projeto que apresentei terá o valor de destruir ante a opinião estrangeira a perspectiva desmoralizadora dos pronunciamentos [eufemismo para as quarteladas da América hispânica].”

O projeto de Frederico Sólon Ribeiro, obviamente, naufragou. O autor foi preso por Floriano poucos meses depois, nos expurgos que se seguiram à Revolta da Armada. O genro Euclides, florianista e integrante das tropas que defenderam o marechal do cerco naval no Rio, viu-se numa saia-justa familiar e escreveu à sogra, Túlia, solicitando que seu nome não mais fosse declinado na casa dos sogros.

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A república e o pessimismo de Maquiavel https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/06/27/a-republica-e-o-pessimismo-de-maquiavel/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/06/27/a-republica-e-o-pessimismo-de-maquiavel/#respond Sun, 27 Jun 2021 13:00:50 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/vasari_fizenzi-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=652 A corrupção foi um dos temas que mais preocuparam os pensadores clássicos que buscaram entender os fundamentos do bom governo e da sociedade virtuosa. Nos séculos XV e XVI, o termo já era comumente utilizado para referir-se a uma situação em que as relações privadas sobrepõem-se às relações públicas, em conflito com o interesse comum. O seu significado abrangia tanto a forma direta de obtenção de favores e privilégios quanto o mecanismo mais sutil e permanente da distorção de leis, instituições e normas em benefício de poucos, dando origem a uma oligarquia, isto é, o governo de poucos para poucos.

A apropriação de vantagens e privilégios seria, assim, a outra face da atividade de indivíduos e associações de indivíduos que legislam, controlam a justiça e administram os negócios públicos em benefício próprio – anulando, desta forma, o governo como expressão da autonomia e da autoridade dos cidadãos.

Os humanistas dos séculos XV e XVI, em especial os da república florentina, empenharam-se no diagnóstico das causas das ordens políticas corruptas, das formas de preveni-las e de suas consequências deletérias para o funcionamento e vigor de cidades e estados. Eles costumavam não ter dúvidas de que a apropriação das instituições do governo e da justiça por uma minoria condenava as comunidades políticas à desagregação e ao declínio.

O assunto foi tratado com destaque, entre outros, por Maquiavel, em seu “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio” (c. 1518). Para Maquiavel, o problema era que, ao ser instalada a corrupção nas instituições de uma república, as dificuldades para eliminá-la seriam imensas.

As dificuldades surgiriam pelo fato de que, assim como os costumes necessitam das leis, as leis dependem dos costumes. Sendo esses últimos corrompidos pelas atitudes que desviam as instituições em favor de poucos, as próprias leis eram incapazes de regenerar, sozinhas, a ordem política.

Diz Maquiavel: “[em Roma] Podia um tribuno, ou qualquer outro cidadão, propor uma lei para o povo; sobre a qual qualquer cidadão poderia falar, em favor ou contra ela, antes de ser deliberada. Essa ordem era boa quando os cidadãos eram bons, pois sempre foi certo que qualquer um que pretendesse uma boa lei para o povo poderia propô-la; e era certo que qualquer um poderia dar sua opinião sobre ela, de forma que tendo o povo ouvido todos os lados, poderia então escolher a melhor. Mas tornando-se maus os cidadãos, essa ordem tornou-se a pior; pois somente os poderosos propunham leis, não para a liberdade comum, mas para os próprios poderosos, e por temor ninguém podia falar contra eles”.

Para manter-se livre da corrupção, Roma ou qualquer comunidade em uma situação similar, na opinião de Maquiavel, deveria ter modificado suas instituições e seus modos de vida para prevenir-se de seus efeitos nocivos. Mas ao consolidar-se o sistema corrupto, só restaria a opção de renovar radicalmente as instituições, seja de forma abrupta, seja de maneira paulatina conforme cada uma das distorções fossem conhecidas.

Aí é que Maquiavel mostrou-se pessimista quanto aos resultados: “eu digo que uma ou outra dessas coisas [alternativas] é quase impossível”. Mesmo entre os potenciais interessados na eliminação da ordem corrupta, o apoio era improvável, “pois homens, acostumados a viver de um modo, não desejam mudar”. Os meios ordinários de mudança (leis, assembleias) também seriam ineficazes, por estarem sob a influência perniciosa da oligarquia, que reage e atemoriza os que desejam a renovação da ordem política.

“De tudo que foi escrito acima, nasce a dificuldade, ou impossibilidade, de manter-se uma república em uma cidade corrompida, ou de criá-la de novo”, conclui Maquiavel.

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O ditador militar admirado pela esquerda peruana https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/06/13/o-ditador-militar-admirado-esquerda-peruana/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/06/13/o-ditador-militar-admirado-esquerda-peruana/#respond Mon, 14 Jun 2021 01:40:18 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/unnamed-3-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=645 Em uma entrevista à TV peruana, perguntaram a Pedro Castillo, virtual presidente eleito do Peru, o que achava de Velasco Alvarado. O esquerdista o elogiou com uma frase curta: “Ele atendeu ao Peru em seu conjunto, e buscou incluir aqueles que estão abaixo”.

Pode parecer estranho aos olhos de quem não conhece a história do Peru o fato de um ditador, que chegou ao poder por meio de um golpe militar, ser um ícone da esquerda. Mas Velasco Alvarado (1968-1975) ocupa esse lugar. E não apenas no Peru. Nos anos 1970, era admirado por vários grupos e partidos políticos esquerdistas na América Latina.

Em outubro de 1968, os militares derrubaram o presidente conservador Fernando Belaúnde Terry. No comando do país, Velasco Alvarado fez o oposto do que outros ditadores dos anos 1960/1970 estavam fazendo no Cone Sul. Governou com o intuito de reduzir as diferenças sociais e acabar com a desigualdade. 

Suas políticas eram nacionalistas e anti-imperialistas, e ele tinha um discurso parecido ao de Juan Domingo Perón (1895-1974) sobre a soberania nacional.

Velasco Alvarado nacionalizou recursos naturais do país, uma de suas principais fontes de riqueza, e realizou uma reforma agrária e um plano de alfabetização nacional. Até 1980, os analfabetos não podiam votar no país. A reforma educacional realizada por Velasco Alvarado deu a um setor da população a possibilidade de participar da política depois da ditadura. Alvarado também modernizou as relações trabalhistas, principalmente na área rural, onde ainda havia uma informalidade enorme, além de situações de trabalho semi-escravo.

Como toda ditadura, obviamente, a de Velasco Alvarado também perseguiu opositores e a liberdade de expressão. E houve um combate muito duro contra guerrilhas que ganharam força nos anos 1960, inspiradas pela Revolução Cubana de 1959. Esses enfrentamentos acabaram radicalizando esses movimentos no campo, favorecendo, por exemplo, o surgimento do Sendero Luminoso, que aterrorizaria o Peru por mais de uma década.

Na política exterior, Velasco Alvarado se afastou dos EUA e se alinhou à então União Soviética, de quem comprou armas. Também aproximou-se da China e de Cuba. Tornou-se amigo, por exemplo, de Salvador Allende, o presidente socialista do Chile derrubado por um golpe militar em 1973.

A ditadura mudou de comando em 1975, passando para o general Francisco Morales Bermúdez. Aí, sim, passou a ser uma ditadura de direita e alinhada com as demais do Cone Sul, com estreitas relações entre Bermúdez e o general Videla, que comandava na ocasião a ditadura argentina.

Em 1977, quando Velasco Alvarado morreu, seu enterro foi acompanhado por uma multidão. Havia sindicatos de trabalhadores urbanos e milhares de camponeses que vieram da região rural despedir-se do líder.

Anos depois, quando Hugo Chávez assumiu o poder, em 1999, tentou exercer um estilo de liderança inspirado em Velasco Alvarado, a quem havia conhecido pessoalmente em 1974 e de quem se declarava um seguidor. Chávez, ainda um jovem cadete, visitou o país para uma celebração militar de comemoração do aniversário de 150 anos da batalha de Chacabuco.

No livro “Hugo Chávez, Un Hombre, Un Pueblo”, a jornalista chilena Marta Harnecker publicou um depoimento de Chávez sobre Velasco Alvarado: “Aos 21 anos, eu estava no último ano da academia militar e já tinha forte impulso por participar da política. Para mim, foi uma experiência emocionante viver a revolução peruana. Conheci pessoalmente a Juan Velasco Alvarado. Uma noite, ele nos recebeu no Palácio e nos deu um livro sobre suas ideias que guardei durante anos”. Tratava-se de uma explicação sobre seu plano de governo, que ele chamava de Plano Inca.

Castillo não é o primeiro aspirante à presidência a evocar Velasco Alvarado. Também o fez Ollanta Humala, que tem um passado ligado ao esquerdismo nacionalista militar, assim como sua família. Por conta desse perfil considerado radical, acabou perdendo a eleição em 2006. Em 2011, porém, ao prometer fazer um governo de centro, deixou as bandeiras velasquistas de lado. Agora, elas aparecem novamente tomadas por Castillo.

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Chegaram a Buenos Aires de barco https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/06/11/escravos-tambem-chegaram-de-barco-a-buenos-aires/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/06/11/escravos-tambem-chegaram-de-barco-a-buenos-aires/#respond Fri, 11 Jun 2021 12:45:23 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/blognegreirobuenosaires-300x213.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=628 A escravidão é um fato da colonização das Américas. Foi predominantemente ameríndia nas regiões mineradoras sob jugo espanhol –e africana nos latifúndios monocultores de cana, algodão, café e tabaco. Houve um tempo, porém, em que a procura por escravizados africanos vinha do altiplano andino e era suprida, à base de contrabando, por mercadores portugueses via porto de Buenos Aires.

No clássico “O Comércio Português no Rio da Prata” (1944), Alice Canabrava documenta essa intensa movimentação entre 1580 e 1640, quando as coroas ibéricas estavam unificadas. A pesquisadora, pioneira da história econômica na USP, mostra como a ação de mercadores, elites locais e burocratas corruptos abriu uma rota clandestina de abastecimento que atingia regiões ricas da mineração, como Potosí.

O império espanhol definira o istmo das Américas como portal exclusivo do comércio ultramarino, mas Buenos Aires, mais próxima das minas do Alto Peru, começou a solapar essa regra entre o fim do século 16 e início do 17, integrando o Brasil e outras possessões portuguesas nessa via de contrabando que fez fortunas. Entravam escravizados africanos, víveres e manufaturas. Saíam ouro e prata.

Apenas um traficante introduziu em Buenos Aires 1.200 escravizados oriundos da África. Barcos negreiros vinham de Angola tendo o Brasil, onde se pagava menos imposto, como destino registrado, mas aportavam de fato no estuário do rio da Prata. Em 1623 o padre Diego de Torres relatava a um colega que entravam 1.500 escravos a cada ano por Buenos Aires. Outro clérigo, Pedro de Espinoza, testemunha que negros trazidos de Angola passavam em grupos de mais de cem por Córdoba, já no interior, a caminho do altiplano.

Comprados a menos de 150 pesos no porto, eram vendidos a mais de 400 conforme avançavam rumo às zonas mineradoras. “No rio da Prata, tal foi a atração exercida pelo comércio de escravos que os governadores solicitavam ao rei seus salários em licenças de escravos; os juízes que funcionavam nos arremates de escravos preferiam receber em escravos negros o terço que lhes cabia”, escreveu Alice.

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As ruínas de que o Ocidente brotou https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/05/12/as-ruinas-de-que-o-ocidente-brotou/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/05/12/as-ruinas-de-que-o-ocidente-brotou/#respond Wed, 12 May 2021 13:15:07 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/Varna_blog_3240px-Grave_43_Varna_Archaeology_Museum_36755886415-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=596 Walter Scheidel, pesquisador de história antiga da Universidade Stanford, publicou há algumas semanas um curto ensaio na revista aeon em que sublinha o papel decisivo do esfacelamento do Império Romano para o sucesso do Ocidente séculos depois. Confira o tamanho da provocação e do exercício de imaginação histórica:

“Se o Império Romano tivesse persistido, ou sido sucedido por uma potência acachapante similar, nós estaríamos com toda a probabilidade ainda arando os nossos campos, a maioria vivendo na pobreza e amiúde morrendo jovens. Nosso mundo seria mais previsível, mais estático. Seríamos poupados de parte das tormentas que nos assaltam, do racismo sistêmico e da mudança climática antropogênica à ameaça da guerra termonuclear. Então, novamente, estaríamos às voltas com antigos flagelos –ignorância, doença e necessidade, reis divinos e escravidão. Em vez da Covid-19, estaríamos enfrentando a varíola e a peste sem a medicina moderna.”

Scheidel tem uma notável sequência de publicações sobre demografia, economia, poder e aspectos comparativos de sociedades antigas. Num trabalho de 2009 com o colega Steven Friesen, procurou estimar o tamanho do que poderíamos chamar de classe média no apogeu do Império Romano, em meados do século 2, quando se calcula que 70 milhões de pessoas viviam sob o jugo da potência do Mediterrâneo.

Foi com o livro “The Great Leveller” [a grande niveladora], de 2017, que Scheidel se tornou mais conhecido fora do circuito dos classicistas. A versão brasileira, de 2020, preferiu o subtítulo da original —“Violência e História da Desigualdade – da Idade da Pedra ao Século XXI”–, mais elucidativo sobre a ambição das suas mais de 600 páginas.

Em suma, ele argumenta que a desigualdade é prima-irmã do crescimento econômico desde o advento das primeiras sociedades especializadas na agricultura, há cerca de 12 mil anos.

A hierarquia e a concentração de renda, poder e riqueza estão documentadas por exemplo nos achados arqueológicos em Varna, cidade banhada pelo Mar Negro na moderna Bulgária. Uma única tumba, provavelmente de um chefe, acumula mais de 25% de todo o ouro encontrado em mais de 200 covas, numa necrópole que data da Idade do Cobre, cerca de 6.500 anos atrás. A iniquidade na distribuição do ouro naquelas paragens, numa época de avanços da metalurgia, pode ser traduzida num índice de Gini de até 0,77.

E o que reduz a desigualdade? Segundo Scheidel, apenas processos de extrema e ubíqua violência –como epidemias, guerras e revoluções com vasta mobilização populacional, além de implosões do poder estatal– conseguiram reverter a marcha da desigualdade e ainda assim por tempo limitado. O engenho político –a educação, a democracia e as reformas sociais– tem milenarmente falhado na tarefa, segundo o historiador de Stanford.

No ensaio para a aeon, Scheidel acrescenta outro salto interpretativo à sua coleção. A fragmentação duradoura que sucedeu ao colapso da Roma ocidental ajudou a produzir a pujança da região, mas o processo desenvolveu também ameaças e mazelas de outra ordem. É uma palinha de seu livro mais recente (2019), “Escape from Rome: The Failure of Empire and the Road to Prosperity” [fuga de Roma: o fracasso do império e o caminho para a prosperidade].

Não é  original a ideia de que a competição entre pequenas nações vizinhas pouco poderosas, em guerra frequente entre si, favoreceu um certo controle do despotismo, além da inovação e da prosperidade econômica, no oeste europeu. Joel Mokyr, Robert Paul Thomas e Douglass North, entre outros, já haviam explorado essa trilha.

Scheidel talvez o faça com uma dose extra de ceticismo. Se você quer progresso, vai ter de lidar com problemas novos, complicados, que fazem parte do pacote e são de difícil mitigação. Não quer progredir? Então fique com os problemas antigos, que também não eram bolinho.

Não se pode ter tudo. Nunca. Haja espírito de porco!

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Depoimentos redesenham massacre em El Salvador https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/05/02/depoimentos-redesenham-massacre-em-el-salvador/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/05/02/depoimentos-redesenham-massacre-em-el-salvador/#respond Mon, 03 May 2021 00:04:06 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/el_mozote_justo_despues_de_la_masacre-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=589 Os EUA estão preocupados com El Salvador.

Afinal, a instabilidade econômica e política dessa nação centro-americana, que só cresceu após a guerra civil (1980-1992), gerou uma imigração volumosa de salvadorenhos aos EUA nas últimas décadas. Além disso, deportados especialmente de Los Angeles, nos anos 1990, jovens voltaram a El Salvador sem perspectivas e entraram para as “maras”, gangues criminosas que hoje aterrorizam camponeses salvadorenhos, que, por sua vez, voltam a buscar refúgio no norte.

Trata-se de um ciclo vicioso de tragédias humanas que se repetem. O norte-americano médio pensa que os salvadorenhos buscam entrar nos EUA apenas porque são pobres, mas no fundo, não é só isso. A imigração é um dos efeitos colaterais de uma relação histórica e muito desigual entre EUA e El Salvador. Hoje, o presidente norte-americano, Joe Biden, tem planos de ajudar economicamente os países do chamado Triângulo do Norte (El Salvador, Guatemala e Honduras). Mas não adianta apenas enviar dinheiro, é preciso colaborar em investimentos para criar trabalho, oportunidades e resolver a crise humanitária nesses países. Uma das providências que se deve tomar é ajudar a revelar a verdade sobre o papel dos EUA na criação das “maras” e, antes disso, em sua atuação clandestina durante a guerra civil.

Além de uma dívida com a história e a verdade, trata-se de um modo de gerar empatia entre as duas nações, essencial para tratar a imigração com mais conhecimento e de modo mais humano.

E é por isso que tem sido importante a retomada do julgamento do massacre de El Mozote, desde 2016, quando caiu a lei de anistia local. O caso está agora numa nova fase de audiências e de coleta de depoimentos, em que estão sendo ouvidos peritos, testemunhas e estudiosos do caso. A ideia é adicionar novas evidências à causa. Depois dessa etapa, o julgamento deve passar para a fase em que os 16 oficiais suspeitos de estarem envolvidos no massacre devem ser levados ao banco dos réus.

Na semana passada, a corte ouviu Terry Karl, uma investigadora de crimes de direitos humanos cometidos na guerra civil salvadorenha, pesquisadora da universidade de Stanford, que revisou arquivos militares e realizou centenas de entrevistas com pessoas vinculadas ao caso. Karl levou ao tribunal evidências de algo que era desconhecido, a presença do sargento Allen Bruce Hazelwood em El Mozote. Além disso, também de que mercenários norte-americanos tinham participado de ações na região. O fato de haver norte-americanos diretamente envolvidos na tragédia, algo que a administração de Ronald Reagan (1981-1989) sempre negou, muda a dimensão do conhecimento sobre a interferência dos EUA nos destinos do conflito. E também aumentam suas responsabilidades com relação aos fatos ocorridos.

Com a ajuda dos poucos sobreviventes, o que se sabe sobre El Mozote (vilarejo que fica a 180km da capital do país) é que, em 1981, o Exército de El Salvador teria chegado até lá. Na praça principal, os soldados juntaram a população. Vendaram e executaram os homens. Depois, as mulheres, não sem antes estuprar várias delas.

Por fim, assassinaram as crianças, além do único soldado que havia se negado a atirar contra menores de idade. O total de civis mortos na operação foi de 960 pessoas.

Oficialmente, as forças de segurança afirmaram que o objetivo era buscar guerrilheiros esquerdistas da Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional (FMLN). Depois da matança, os soldados puseram fogo em corpos e casas e deixaram o local, talvez achando que ninguém se daria conta do desaparecimento daquelas pessoas.

Calados pelo governo, os meios de comunicação locais quase não publicaram nada sobre o tema. Dois jornalistas estrangeiros, porém, decidiram visitar o local, porque tinham escutado um rumor sobre o caso, e desvendaram a história. Foram o norte-americano Raymond Bonner, do New York Times, e a mexicana Alma Guillermoprieto, do Washington Post. A partir daí, o caso ganhou projeção internacional e a cobrança por uma solução é uma demanda da população salvadorenha e dos organismos de direitos humanos.

Mesmo assim, o julgamento atual só começou em 2016, quando foi derrogada a lei de anistia, e a Justiça iniciou o julgamento de 16 ex-militares envolvidos.

Num momento em que o país segue vivendo os problemas relacionados a instabilidade econômica e violência, que forçam a imigração, e, além disso, atravessa uma crise política em que o governo de Nayib Bukele avança contra as instituições, elucidar o que ocorreu em El Mozote é essencial.

Uma conclusão sobre o que ocorreu naquele dia e Justiça para as vítimas é uma demonstração de que o país repudia os abusos de direitos humanos. Justamente num momento em que o país volta a ter um líder autoritário, é mais do que necessário mostrar-lhe que certos limites jamais podem ser ultrapassados outra vez. Porque, se isso ocorrer, já não haverá mais impunidade.

 

 

 

 

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Um clássico do domínio holandês no Nordeste https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/04/28/um-classico-do-dominio-holandes-no-nordeste/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/04/28/um-classico-do-dominio-holandes-no-nordeste/#respond Wed, 28 Apr 2021 13:00:58 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/franspostgonsalvesholanda-300x213.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=569 O lançamento mais recente do escritor Lira Neto, “Arrancados da Terra”, focaliza um pedaço do que foi Pernambuco sob o domínio da Holanda no século 17 para contar a saga de judeus ibéricos perseguidos que acabaram aportando na atual Nova York. Em 1947, José Antonio Gonsalves de Mello publicava “Tempo dos Flamengos”, um clássico da descrição desse interregno de 24 anos (1630-1654) em que invasores protestantes deram as cartas em parte do Nordeste do Brasil.

Gonsalves de Mello foi o primeiro historiador brasileiro a enfurnar-se no riquíssimo acervo do Livro de Atas do Alto Conselho Político do Brasil, que documenta, da perspectiva dos conquistadores, os últimos 19 anos da ocupação. O material pesquisado sobre a atuação dos judeus, narrada em poucas páginas no capítulo final de “Tempo dos Flamengos”, é esmiuçado a ponto de compulsar a participação de israelitas nos contratos para coletar impostos.

A amplitude da movimentação dos judeus na possessão sul-americana da Companhia das Índias Ocidentais permitia que atuassem inclusive no comércio varejista, atividade que lhes era vedada na própria Holanda. O domínio dos dois idiomas, o português e o holandês, e o tirocínio para negócios mal explorados pela companhia deram vantagens a empreendedores judeus, o que motivou ódios e revanchismo da parte de holandeses protestantes e de senhores de engenho brasileiros.

Esse é um dos vários aspectos de interesse, alguns pioneiros, de “Tempo dos Flamengos”. Gonsalves de Mello relata um forte adensamento urbano no Recife, com explosão dos preços de terrenos, aluguéis bem mais elevados que em Amsterdam e precarização habitacional, numa área equivalente à de um retângulo de 1.000 m de comprimento por 100 m de largura. “Não há empregado que possa alugar um quarto pequeno”, reclamava uma comunicação oficial de 1641.

A crueldade no transporte de escravos da África em yachts holandeses –embarcações batizadas com nomes como A Donzela de Enkhuysen, A Esperança Branca e Caridade– é exposta em cifras frias pelo conde Maurício de Nassau: “Vejo pelos registros que embarcaram para o Brasil 6.468 escravos no período de 7 de fevereiro de 1642 a 23 de julho de 1643, dos quais 1.524  faleceram”.

A dificuldade dos holandeses de substituir os senhores e escravos locais na produção do açúcar e o reconhecimento da  necessidade de habilidades específicas para a empreitada, estratégica para os invasores, ficam atestados: “A conquista do Brasil sem os portugueses trará poucas vantagens à Companhia. Sendo o principal negócio ali o fabrico do açúcar, faz-se necessário para isso muitos esforços e singular conhecimento (…) que foram adquiridos após longa aprendizagem [para o que] os holandeses, em tão pouco tempo, não estão habilitados”, escreveu  Nassau em 1646.

Temas como concessões de obras e serviços públicos, ordenamento urbano, instrução de povos indígenas, hábitos alimentares e práticas religiosas estão documentados com pormenores incomuns para o padrão do Brasil seiscentista.

Em 1642, preocupado com o que os economistas do século 20 viriam a chamar de “custos de transação” da administração da Justiça, o conde de Nassau desabafou para os mandachuvas na Holanda: “Os salários ou emolumentos dos secretários, notários, procuradores, solicitadores, tradutores, meirinhos, mensageiros, executores e outros oficiais da Justiça elevam-se a tanto que duvido que haja lugar no mundo onde tanto se lhes pague, além das multas, percentagens, extorsões, comissões dos escoltetos e seus subordinados, que não se contentam com pouco.”

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Terapias químicas e sociais contra a peste https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/04/13/terapias-quimicas-e-sociais-contra-a-peste/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/04/13/terapias-quimicas-e-sociais-contra-a-peste/#respond Tue, 13 Apr 2021 14:30:29 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/troia_filme_post-300x213.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=552 A aventura dos helenos contra os troianos quase deu com os burros n’água por causa da peste. Homero começa a narrar a Ilíada pelo impasse em torno da praga que durante nove dias fez arderem sem cessar as piras dos mortos no exército invasor estacionado às portas da cidade fortificada.

Os comandantes gregos tinham aprontado com a pessoa errada. Agamenão, o rei maioral, tomara a filha de um sacerdote de Apolo como butim. Em vão, o sacerdote tentou negociar com o monarca o resgate da garota. Apelou então a seu pistolão no Olimpo, e o divino arqueiro desceu furibundo em socorro a seu protegido. “Chegou como chega a noite.”

Pôs-se a disparar as setas da pestilência contra os aqueus, que tombavam, e só parou quando o rei grego mudou de ideia e devolveu a filha ao sacerdote –não sem enfurecer na transação o herói Aquiles, o que deu pano para manga.

“Flecha de Apolo” (Apollo’s Arrow) é o título do livro que o médico, sociólogo e pesquisador da Universidade Yale Nicholas Christakis lançou no final de outubro sobre a Covid-19. As suas predições têm chamado a atenção de comentaristas, mas os mergulhos na experiência clínica do autor e na história me atraíram mais.

Christakis recruta a riquíssima tradição da medicina social britânica. William Farr, sob cujas lentes o impacto das desigualdades sociais na mortalidade e na saúde ficou mais evidente, propôs em meados do século 19 o método, já comentado aqui, de computar o excesso de mortes como meio de estimar o efeito das epidemias. Mais de um século depois, o médico e historiador Thomas McKeown provocou entusiastas da farmacologia com gráficos como o abaixo.

Note que a tuberculose, uma das grandes assassinas da história da humanidade, já havia declinado substancialmente na Inglaterra quando, após a Segunda Guerra Mundial, antibióticos e vacina foram disseminados para o seu enfrentamento. Algo semelhante ocorreu nas curvas históricas de outras doenças, como a febre tifoide, a escarlatina e o sarampo.

McKeown advogou que fatores não diretamente médicos precederam (e preponderaram sobre) a medicina –farmacologia e imunologia incluídas– na prevenção de mortandades causadas por moléstias infecciosas. Embora ele tenha superestimado a importância da nutrição e da habitação e subestimado fatores como o saneamento básico e outras intervenções do poder público, o sentido geral da sua conjectura veio se confirmando pela pesquisa especializada.

Tire o cavalo da chuva quem gosta de polarizar tudo. O debate instalado pelo historiador britânico não é sobre se drogas, vacinas, terapias e hospitais salvam vidas. Claro que salvam. Ele estava preocupado com estabelecer o peso de cada fator na evolução secular e escrevia numa altura do século 20 em que se louvava exageradamente o poder da medicina.

HIV, ebola, Mers, gripe suína, Sars 1 e 2 vieram mais tarde esclarecer que nosso pacto fáustico com a salvação pela química não era tão firme e não dispensava iniciativas organizacionais e individuais não farmacológicas no seu combate.

A nota serena de mirar o duelo milenar entre a humanidade e as doenças infecciosas, para mim o ponto alto do livro de Nicholas Christakis, é compreender que pode levar tempo, mas sociedades e patógenos quase sempre acabam encontrando um meio de conviver entre si com menos danos. Chegam a uma trégua relativa.

A arrogância de Agamenão não resiste a dez dias de flechadas de Apolo.

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