A história é a seguinte https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br Contamos por que todo passado é presente Tue, 10 Aug 2021 12:55:04 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Pauliceia 2.0: um experimento de ciência aberta com a história de São Paulo https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/02/01/pauliceia-2-0-um-experimento-de-ciencia-aberta-com-a-historia-de-sao-paulo/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/02/01/pauliceia-2-0-um-experimento-de-ciencia-aberta-com-a-historia-de-sao-paulo/#respond Mon, 01 Feb 2021 13:00:55 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/mapa1924sp-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=440 Por Ana Maria Barbour e Luís Ferla

É inevitável reconhecer a influência de recursos digitais no trabalho dos pesquisadores em humanidades. Se por um lado o uso de tecnologias nessas áreas aumenta cada vez mais, e com elas novas possibilidades de investigação, por outro, desafios metodológicos e avaliativos se impõem.

Como vantagem, vale destacar a capacidade que as máquinas, softwares e a internet têm de promover uma ciência aberta, isto é, a democratização do conhecimento, com a ampliação do alcance social da produção acadêmica e incorporação de contingentes extrauniversitários. Tais objetivos têm sido muitas vezes perseguidos por meio de projetos colaborativos e compartilhados – que envolvem acadêmicos e a comunidade –, viabilizados pelas próprias tecnologias utilizadas.

Como desafio vemos, entre outros, o conflito  entre as exigências de precisão do mundo dos computadores e a inexatidão das humanidades, sempre à volta com as subjetividades inerentes à interpretação da vida social. Sem falar na falta de critérios institucionais para avaliar o trabalho do pesquisador em projetos de humanidades digitais, estando aqueles ainda presos ao paradigma do texto impresso.

Dentre as tecnologias que despertaram o interesse dos historiadores desde os anos 2000 estão os Sistemas de Informação Geográfica (SIG). Trata-se de projetos elaborados com softwares que permitem gerenciar grandes quantidades de dados, dando sua localização no espaço e no tempo, sendo o mapa a forma mais fácil de comunicar os resultados dessas análises. 

Um exemplo bem-sucedido, que agrega os princípios da ciência aberta e o uso de SIG Histórico, é o portal Pauliceia 2.0 – lançado em sua versão beta em 2018 – que propõe o mapeamento colaborativo da história da cidade de São Paulo entre 1870 a 1940. A iniciativa reúne pesquisadores da Unifesp, INPE e da Emory University, e teve financiamento da Fapesp.

Ali, qualquer pessoa pode alimentar os seus dados espacializáveis, tendo como resultado uma visualização de sua pesquisa, podendo usá-la em produções científicas. Ao mesmo tempo, a cada alimentação, a base comum é enriquecida, transformando-se em um acervo de material de pesquisa passível de dar suporte a reflexões historiográficas. O controle da informação sobre o conteúdo colocado cabe à própria comunidade de usuários, semelhante ao modelo Wikipedia. A interface inclui ainda um geolocalizador, que possibilita ao usuário localizar endereços do passado (entenda melhor aqui a concepção do projeto).

Hoje já é possível encontrar camadas de usuários sobre temas diversos, como a produzida pelo grupo Hímaco, mostrando a abrangência da grande e trágica enchente de 1929. Essa camada pode ser contraposta a outras e subsidiar análises. Por exemplo, a camada de indústrias do Bom Retiro do começo do século 20, criada também pelo grupo Hímaco com base na pesquisa da professora Sarah Feldman, da USP. A contraposição sugere as fábricas que, possivelmente, foram atingidas pelas águas em 1929.

Mapa produzido através da plataforma, cruzando dados sobre indústrias do Bom Retiro e a enchente de 1929 (Imagem: Reprodução)
Mapa produzido através da plataforma, cruzando dados sobre indústrias do Bom Retiro e a enchente de 1929 (Imagem: Reprodução)

O estudo do Hímaco, presente no Pauliceia 2.0, já deu suporte, inclusive, a um levantamento feito pela Folha que, ao cruzá-lo com dados recentes do CGE (Centro de Gerenciamento de Emergências), mostrou que  São Paulo revive as mesmas enchentes há 91 anos.

Assim, a plataforma permite não apenas uma nova forma de divulgação das pesquisas sobre a história da cidade de São Paulo, possibilitando a sua espacialização,  mas ela mesma se constitui em um ambiente articulador e integrador de pesquisas as mais diversas, estimulando novas e inesperadas reflexões. Essas características conformam o caráter colaborativo e de ciência aberta do projeto.

A experiência do projeto Pauliceia 2.0 não dá conta das possibilidades da presença das tecnologias digitais no ambiente de trabalho do historiador, nem tampouco dá subsídio para refletir acerca de toda a complexidade das transformações metodológicas e epistemológicas envolvidas. Mas é pretensão da equipe do projeto que, em alguma medida, ela pode contribuir para o debate.

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Ana Maria Barbour é jornalista e historiadora, integrante do projeto Pauliceia 2.0

 Luís Ferla é professor de História da UNIFESP e coordenador do projeto Pauliceia 2.0

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Uma pequena história da visualização de dados (I) https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/01/28/uma-pequena-historia-da-visualizacao-de-dados-i/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/01/28/uma-pequena-historia-da-visualizacao-de-dados-i/#respond Thu, 28 Jan 2021 16:25:55 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/Minard-carte-viande-1858-1-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=128 A atual pandemia acelerou a mobilização de gráficos e infográficos como instrumentos essenciais para construção do debate público. Mas qual é a história por trás de alguns dos gráficos mais conhecidos, os gráficos de barras e de pizza?

Os gráficos de pizza e de barras foram produto do mesmo indivíduo, o escocês William Playfair (1759-1823), um dos pioneiros na história da visualização de dados. Playfair foi o primeiro a produzir e publicar, no seu “The Commercial and Political Atlas” em 1786, um gráfico de barras na sua versão moderna.

O gráfico de barras foi a solução de Playfair à falta dos dados necessários para construir um gráfico de série temporal dos valores de exportação e importação entre a Escócia e seus parceiros comerciais, gráfico este que seria então representado visualmente por uma linha. No gráfico em questão, que pode ser observado abaixo, os valores totais do comércio internacional da Escócia estão representados na parte superior ao longo do eixo x. Já a lista de países e os valores de exportação e importação correspondentes a cada país estão representados ao longo do eixo y, o primeiro no canto direito e o segundo no canto esquerdo. A cada país corresponde duas barras inseridas lado a lado, uma para exportação e outra para importação.

William Playfair, “Exportação e importação da Escócia para e de diferentes partes para [o período de] um ano do Natal de 1870 ao Natal de 1871”, The Commercial and Political Atlas, 1786, 1801 (Terceira Edição). O primeiro gráfico de barras apareceu na primeira edição de 1786. Wikimedia Commons.

Já o gráfico de pizza apareceu em 1801 no seu livro “Statistical Breviary”, quinze anos após a publicação do gráfico de barras. No “Gráfico representando a extensão, população e receita das principais nações na Europa”, que pode ser visualizado abaixo, Playfair introduziu um número ainda maior de informações complexas que no seu primeiro gráfico de barras. A área dos círculos, por exemplo, representava a extensão territorial dos Estados incluídos no gráfico, facilitando a comparação entre as unidades. As linhas que partiam dos círculos, por sua vez, representavam à esquerda população e à direita renda. Finalmente, os círculos são coloridos de acordo com sua localização em termos do continente no qual os Estados eram localizados. E é aqui que o gráfico de pizza surgiu–para resolver o caso do Império Otomano, um Estado com territórios em três continentes. Por isso, o círculo correspondente à Turquia é dividido em três setores, cada uma representando proporcionalmente sua área em cada continente.

Esse teria sido também o primeiro gráfico a utilizar um sistema de codificação de cores, no qual Estados são associados a características específicas. William Playfair, “Gráfico representando a extensão, população e receita das principais nações na Europa”. Statistical Breviary, 1801. Wikipedia Commons. Uma imagem com maior resolução pode ser acessada na mostra virtual Data Visualization and the Modern Imagination.

Para compreender a importância de Playfair na história da visualização de dados é necessário situá-lo em relação aos seus contemporâneos. Ao contrário de intelectuais e funcionários de governos no continente europeu e na Inglaterra, Playfair não acreditava que o uso de tabelas numéricas descritivas era a forma primordial de apresentação e análise de dados. Convencido por experimentos empíricos realizados durante a sua juventude de que todo número podia ser expresso como uma linha, Playfair também foi o criador do primeiro gráfico de linha baseado em uma série temporal.

William Playfair, “Exportação e importação [da Inglaterra] para e de Dinamarca e Noruega de 1700 a 1780”, The Commercial and Political Atlas, 1786, 1801 (Terceira Edição). O primeiro gráfico de barras apareceu na primeira edição de 1786. Wikimedia Commons.
Playfair julgava que o uso de técnicas de representação visual (um campo ainda muito incipiente à época) era um meio superior de apresentar dados e construir argumentos. Isso porque, para ele, gráficos informavam em minutos o que tabelas e figuras levavam dias para comunicar à sua audiência. Uma testemunha da emergência da sociedade industrial moderna, Playfair defendia que “à medida que o conhecimento da humanidade cresce, e transações multiplicam, se torna mais e mais desejável abreviarfacilitar as formas de transmitir informação de uma pessoa para a outra, e de um indivíduo para muitos.” A representação de números desempenharia essa dupla função.

Uma vez que muitas dessas técnicas eram ainda inexistentes, contudo, Playfair foi um dos responsáveis por criar e popularizar alguns instrumentos de visualização de dados (o que ele chamava de lineal arithmetic, ou aritmética linear) que hoje tomamos como parte integral do nosso cotidiano.

O pontapé inicial dado por Playfair foi aproveitado por outros intelectuais, engenheiros (como o francês Charles Joseph Minard, cujo mapa temático abre esse texto e inclui gráficos de pizza), burocratas e figuras públicas durante o século XIX — considerado por alguns estudiosos como a era dourada da produção de gráficos e infográficos. Florence Nightingale, uma estatística e enfermeira britânica que participou da guerra da Criméia (1853-1856), teria também criado diagramas inovadores sobre as causas da morte do exército britânico na guerra justamente para mobilizar a elite política à época para criar melhores condições sanitárias nos hospitais de campanha. Os diagramas de Nightingale demonstravam que a maior causa de mortes durante a guerra não havia sido o conflito em si, mas as doenças geradas pelas condições insalumbres nas quais soldados viviam e a falta de cuidados médicos adequados. Nightingale, como Playfair, também acreditava que uma imagem valia mais que mil palavras–ou, nesse caso, números–como instrumento no debate público.

Contudo, o uso de gráficos e diagramas só foi de fato popularizado ao longo do final do século 19 e início do século 20 com a publicação de manuais na Europa e nos Estados Unidos que ensinavam as técnicas necessárias para produzi-los e com o maior uso desses instrumentos em campanhas de natureza públicas e na imprensa. Lentamente, burocratas também recorreram a esses instrumentos na condução da máquina do Estado.

Rapidamente, gráficos, diagramas, mapas temáticos e infográficos começaram a ser mobilizados para reforçar argumentos de cunho social e econômico. O governo chinês, por exemplo, fez uso desses instrumentos para representar o avanço industrial na área de Xangai em 1933 e 1934 e promover um argumento de prosperidade emergente. Na imagem abaixo, compartilhada pelo historiador Ghassan Moazzin no Twitter, gráficos de barras e de pizza apresentam o número de trabalhadores em fábricas em Xangai nesses dois anos. Enquanto o gráfico de barras apresenta a distribuição de trabalhadores por setor, o gráfico de pizza divide a população operária entre crianças, homens, mulheres e pessoas de gênero desconhecidos. Os dados apontavam ainda para o boom comercial, financeiro e industrial pelo qual a região passaria na década de 1930.

Hoje gráficos de barra e de pizza fazem parte de um grande repertório de instrumentos de visualização de dados que informam a maneira como interpretamos o mundo. Para destacar sua importância, a revista inglesa The Economist montou uma retrospectiva dos seus melhores gráficos de 2020, enquanto o designer de visualização de dados e pesquisador do Laboratório de estudo e pesquisa em Design da Informação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Igor Falconieri publicou um fio sobre algumas das visualizações de dados mais impactantes de 2020 segundo sua perspectiva. Vale a pena dar uma conferida.

Para aqueles que gostariam de ler mais sobre a história da visualização de dados, recomendo três livros: The Visual Display of Quantitative Information, de Edward Tufte, um clássico publicado agora na sua segunda edição; The Minard System: The Complete Statistical Graphics of Charles-Joseph Minard, por Sandra Rendgen, e History of Information Graphics, por Sandra Rendgen e Julius Wiedemann (já recomendado em outro post). Em junho de 2021, Michael Friendly (autor de vários artigos sobre o tema) e Howard Wainer publicam novo volume sobre o assunto, A History of Data Visualization and Graphic Communication.

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