A história é a seguinte https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br Contamos por que todo passado é presente Tue, 10 Aug 2021 12:55:04 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A estátua na praça do enforcado https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/08/03/a-estatua-na-praca-do-enforcado/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/08/03/a-estatua-na-praca-do-enforcado/#respond Tue, 03 Aug 2021 13:00:46 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/blog_estatua_dpedro_pcatiradentes-300x213.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=669 A praça Tiradentes, no centro do Rio, ostenta uma estátua equestre de Pedro 1º, neto de Maria, a rainha portuguesa responsável pelo enforcamento do inconfidente, naquele mesmo local.

A confusão se desenrola, mas não se desfaz, com as datas. Joaquim José foi executado em 21 de abril 1792. A estátua foi colocada em 1862  pelo segundo Pedro imperador, filho do primeiro. A praça, outrora da Constituição, foi batizada com o nome atual em 1890, logo após a proclamação da República.

O mal-estar já estava instalado na inauguração do monumento, conta José Murilo de Carvalho em “A Formação das Almas” (Cia das Letras). Teófilo Otoni, liberal mineiro, chamou-a de “mentira de bronze”. Panfletos com um poema crítico à homenagem foram apreendidos pela polícia: “Hoje o Brasil se ajoelha/E se ajoelha contrito/Ante a massa de granito/Do Primeiro Imperador!”

Radicais republicanos, que elegeram Tiradentes o primeiro mártir da causa, quiseram se vingar depois que o Império tinha se esfacelado. Em 1893 a ideia deles era comemorar o 21 de abril na praça do alferes enforcado, mas sem o olhar inconveniente do primeiro imperador em seu cavalo. Alguém teve uma ideia: vamos erguer um coreto, um biombo em torno da estátua, e desaparecer com ela para os festejos. A prefeitura, sob Barata Ribeiro, inicialmente colaborou com os planos de ocultar a imagem de pedra. Até sentir o calor da reação.

A ousadia foi considerada tamanha que, na véspera da comemoração, até O Paiz, veículo republicano e governista, reclamou. “Velar, de qualquer forma ou sob qualquer pretexto, uma estátua da ordem da de que se trata é ato desassisado e que pelo menos cobre-nos do epíteto de orgulhosos ignorantes”.

A prefeitura decidiu então desfazer a obra de ocultação dos tiradentistas, mas pelo visto os partidários do imperador montado não botaram fé na boa vontade das autoridades e começaram eles mesmos a quebrar o coreto, o que exigiu a intervenção da força policial. O Paiz, que concordou com o mérito dos queixosos, discordou dos meios: “Nunca aconselharemos o povo aos atos de represália e ao desforço de próprias mãos”.

No dia seguinte, as comemorações do dia de Tiradentes tiveram de ser canceladas.

 

 

 

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O general queria os militares fora do governo https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/07/15/o-general-queria-os-militares-fora-do-governo/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/07/15/o-general-queria-os-militares-fora-do-governo/#respond Thu, 15 Jul 2021 20:20:08 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/revoltaarmadaferrez-300x213.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=658 Em 15 de junho de 1893, o general Frederico Sólon Ribeiro, deputado federal por Mato Grosso, pediu a palavra para encaminhar à apreciação da Câmara o seguinte projeto de lei:

Art. 1º Nenhum militar em atividade poderá exercer cargo algum político, quer de eleição popular, quer de nomeação.

Art. 2º O militar que aceitar cargo de que trata o artigo anterior entende-se ter renunciado à sua patente.

Parágrafo único. A falta de renúncia expressa induz reforma imediata com as vantagens que por lei competirem ao reformado, sem direito ao regresso ao serviço ativo do Exército.

Art. 3º. Excetuam-se, nas disposições do art. 1º, as comissões técnicas e científicas ou diplomáticas previstas por lei.

Frederico Sólon guardava do lendário reformador ateniense apenas o nome, assim como o coronel niteroiense Benjamin Constant não passava de uma sombra quase contraditória do seu célebre homônimo franco-suíço, gigante do liberalismo continental.

Esses oficiais, no entanto, eram o que tinha para o dia no final do século 19, no Rio, e ajudaram a fazer a nossa República na base da força. Enquanto Benjamin disseminava um positivismo intervencionista nas escolas militares, Frederico, ainda major, disseminava desinformação. Ele espalhou a mentira, em 14 de novembro de 1889, de que o gabinete Ouro Preto havia decretado a prisão do marechal Deodoro da Fonseca, de Benjamin Constant e de agitadores republicanos. Foi o estopim para o golpe do dia seguinte.

Em 1893, Sólon, sogro do escritor Euclides da Cunha, estava rompido com o marechal Floriano Peixoto, que assumira, ao arrepio do comando constitucional, a Presidência no final de 1891, após um autogolpe frustrado de Deodoro. À proclamação havia se seguido um avanço voluptuoso de militares sobre postos administrativos, verbas e privilégios federais.

É nesse contexto que o general Sólon Ribeiro apresenta o projeto de lei para acabar com a farra. Dez dias depois de pedir passagem à proposta na Câmara, ele justificou a iniciativa num artigo ao Jornal do Commercio:

“A história está repleta de Exércitos liberticidas que, sobretudo após as grandes reformas sociais, têm sempre a parte do leão em todos os despojos; faltava-lhe o exemplo de um Exército procurando espontaneamente o império nobilitador da lei, abdicando ambições fáceis de serem realizadas e às quais se presta admiravelmente toda a perturbação que lavra por este país. (…) O projeto que apresentei terá o valor de destruir ante a opinião estrangeira a perspectiva desmoralizadora dos pronunciamentos [eufemismo para as quarteladas da América hispânica].”

O projeto de Frederico Sólon Ribeiro, obviamente, naufragou. O autor foi preso por Floriano poucos meses depois, nos expurgos que se seguiram à Revolta da Armada. O genro Euclides, florianista e integrante das tropas que defenderam o marechal do cerco naval no Rio, viu-se numa saia-justa familiar e escreveu à sogra, Túlia, solicitando que seu nome não mais fosse declinado na casa dos sogros.

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Bebês ficam para depois https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/03/29/bebes-ficam-para-depois/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/03/29/bebes-ficam-para-depois/#respond Mon, 29 Mar 2021 21:30:29 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/bebes_postnascimentos2-300x213.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=527 No início das medidas mais drásticas de restrição para frear o coronavírus, há um ano, surgiu a dúvida: as pessoas resguardadas nos lares fariam mais ou menos filhos? Em tese, os dois desdobramentos seriam possíveis.

Casais reunidos por mais tempo poderiam tomar a decisão de ampliar a família, e o aumento das relações sexuais, também por hipótese, resultaria num número maior de gravidezes não planejadas. Por outro lado, a insegurança sobre o futuro, o medo da morte e do empobrecimento e o estresse costumam agir no sentido contrário.

Nove meses depois, o segundo efeito, depressivo, parece que prevaleceu. Na Espanha, onde a quarentena foi bem  apertada, os nascimentos em dezembro e janeiro últimos despencaram 23% na comparação com um ano antes.  Os nascimentos em dezembro de 2020 sugerem que a capital paulista foi pelo mesmo caminho.

Nada novo.

Na gripe espanhola, que incidiu fortemente no último trimestre de 1918, o padrão foi semelhante. Os nascimentos na capital paulista vinham quase estáveis em 1917 e 1918, mas caíram 5% em 1919.

Há outro elemento na observação histórica para em breve tirarmos a teima: tão logo o perigo se vai, a sociedade tende a compensar os filhos não nascidos durante a crise. Em 1920, os nascimentos cresceram 16% na capital paulista. Nos EUA, após a queda de 7% em 1919, vieram as altas também atípicas de 8%, em 1920, e 4%, em 1921.

Esse efeito de mola encolhida que de repente se expande e apenas num terceiro estágio reencontra alguma estabilidade ocorreu em outros domínios da vida. Na economia, na cultura, nos costumes. Os efervescentes anos 1920 sucederam a trágica segunda metade da década anterior. Vamos ver como as coisas se desenrolam desta vez.

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Peste e pânico em Araraquara https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/03/02/peste-e-panico-em-araraquara/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/03/02/peste-e-panico-em-araraquara/#respond Tue, 02 Mar 2021 12:15:10 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/estacaoferroviariaararaquara-300x213.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=491 Os habitantes de Araraquara esvaziaram as ruas com medo da peste. Ela parecia ter poupado a população da hecatombe poucos meses antes, quando oligarcas negacionistas declararam superada a ameaça, mas se abateu como praga bíblica nesta segunda onda.

A moléstia matou o pároco no Natal. Seu substituto sucumbiu no mesmo verão sem ter tempo de receber os últimos sacramentos. O presidente da Câmara foi fulminado. Coveiros do cemitério tombaram, o que alimentou soturnas teorias sobre o espalhamento do mal.

A vida como era antes colapsou. Animais abandonados pelos donos se exauriram nas residências trancadas, o lixo se acumulou, o mau cheiro se espalhou e gatunos liderados por um sargento saquearam tudo. Procedimentos eleitorais foram suspensos. Os serviços que insistiram em funcionar se mudaram para Américo Brasiliense, logo ao lado.

O governo do estado interveio, com seus regramentos e comissões de sanitaristas. Segreguem-se os doentes, fora com a imundície. O juiz de direito de Araraquara não quis  aplicar multas a quem desobedeceu aos decretos. Médicos locais –entre eles um certo dr. Dória, também delegado– não toparam colaborar com o confinamento obrigatório e foram sendo substituídos por figurões enviados pela capital.

Quem fugiu para outras paragens arriscou-se. Donos de hospedarias foram obrigados a delatar todo hóspede que chegava de Araraquara. Proprietários foram convocados a entregar a chave das casas vazias ou vê-las arrombadas pelas autoridades higienizadoras.

Em outras cidades do interior tomadas pela infecção, motins pela liberdade individual desafiaram as ordens de resguardo da gestão estadual. O jornal da oposição tomou o partido dos comerciantes prejudicados. Os situacionistas louvaram as ações do governo estadual, como o pai severo e zeloso que salva vidas.

A Câmara quis aumentar impostos para tapar o buraco na arrecadação. A oposição enraivecida sugeriu que, em vez disso, os vereadores acabassem com suas sinecuras ou renunciassem de vez, poupando desgastantes cassações de mandato.

Tudo isso aconteceu em 1895 e 1896 na próspera comarca da região central do estado de São Paulo, então servida pela Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Os trilhos que levavam o café para o porto de Santos traziam de lá imigrantes europeus e a febre amarela, que se interiorizava desde o ano da Proclamação da República. O vetor da doença, o mosquito Aedes aegypti, ainda não havia sido identificado, e as autoridades atiravam para todos os lados na tentativa de compreendê-la e evitar a sua proliferação.

O relato integra a tese de doutoramento “Poder e Saúde: a República, a Febre Amarela e a Formação dos Serviços Sanitários do Estado de São Paulo”, que Rodolpho Telarolli Junior defendeu na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp em 1993.

 

 

 

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O dia em que o mundo não acabou https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/01/19/o-dia-em-que-o-mundo-nao-acabou/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/01/19/o-dia-em-que-o-mundo-nao-acabou/#respond Tue, 19 Jan 2021 13:00:22 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/1121px-MARTIN_John_Great_Day_of_His_Wrath-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=362 Quando ao virar da meia noite do dia primeiro de janeiro de 1900 o céu permaneceu imóvel, o alívio deve ter sido palpável entre aqueles que acreditavam que a virada do século traria o fim do mundo. A tragédia, segundo o cronista Jorge Americano em “São Paulo naquele tempo” (Edição Saraiva), ocorreria em três tempos. Primeiramente, tudo escureceria, incluindo as estrelas. Em um segundo momento, esfriaria bruscamente. Finalmente, uma explosão grandiosa envolveria o planeta. Assim, relata, ouviu de quem trabalhava em sua casa.

Chegando nos primeiros segundos do ano de 1900, o fim do mundo narrado por Americano estava, na bem da verdade, quase dois meses atrasado. Amplamente divulgado, o fim “original”, profetizado pelo astrônomo alemão Rudolf Falb, viria por cometa no dia 13 de novembro. Não veio. Para aqueles negativamente afetados pelo alarde, um anúncio publicado no carioca Gazeta de Notícias em 24 de novembro recomendava o “Matto Especial de Santha Catarina”, útil em acalmar os nervos à flor da pele –monetizar o desespero alheio não é novidade do século 21.

Na ausência do bug do milênio, os fins imaginados em 1899 trocavam a tecnologia, então inexistente, por fenômenos naturais aparentemente plausíveis: explosões, cometas, um possível dilúvio, segundo relato do periódico Estado do Espírito Santo. Se as previsões falharam em apontar a cena derradeira da humanidade, foram precisas em ilustrar um imaginário coletivo intangível. Como bem descreveu uma crônica publicada no A Estação: “Tão calamitosos correm os tempos que realmente parece estarmos em vésperas de um medonho cataclismo”. Na falta de palavras, cometas assassinos fazem todo sentido.

Mais do que um evento único e decisivo, o fim do mundo parece as vezes ser ocorrência diária e recorrente. Tomando a cada dia nova forma. Nos primeiros instantes de 2021, ele parece ter chegado não pelo fogo ou pela água, mas pela falta de ar.

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“Antes de achar trabalho, achei a epidemia” https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/01/06/antes-de-achar-trabalho-achei-a-epidemia/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/01/06/antes-de-achar-trabalho-achei-a-epidemia/#respond Wed, 06 Jan 2021 13:10:13 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/hospital-1918-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=330 Nos primeiros dias de outubro de 1918, João Francisco Carreira, sua mulher e cinco filhos deixaram Socorro onde moravam com destino à capital do estado. Pedreiro de profissão, o objetivo de Carreira era tornar-se operário da emergente indústria paulistana. Por infortúnio do destino, junto com a família chegou a São Paulo a gripe espanhola.

Em carta enviada ao então prefeito Washington Luís (Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, Fundo PAH, 384) Carreira narra suas tentativas frustradas de conseguir serviço. A epidemia, escreve, “frustrou a todos nós”. Na ausência de uma fonte de renda, as pequenas economias da família esgotaram-se em menos de um mês. Como último recurso, escrevia ao prefeito rogando colocação nos serviços municipais. “Senhor, tenho horror à miséria,” sentenciou ao fim da carta.

O pedido foi repassado para diversos serviços municipais, da polícia aos cemitérios, a fim de que o nome de Carreira fosse lembrado “quando haja necessidade ou falta de pedreiro”. Se ele foi de fato chamado, não sabemos, mas em algum momento entre o fim de 1918 e fevereiro de 1921 Carreira voltou a residir em Socorro. Sobreviveu à epidemia para, infelizmente, presenciar a morte de uma de suas filhas. Mariquinha e seu namorado recriaram, para tristeza dos familiares, a cena fatídica de Romeu e Julieta, trocando o veneno e o punhal por balas de revólver. As tragédias, tal como hoje, vêm de todos os lados.

Para quem quiser entender como a gripe espanhola afetou a milhares de outros Joãos, a leitura de “Influenza, a medicina enferma” de Liane Maria Bertucci (Editora Unicamp) é uma experiência que beira ao surrealismo. Das primeiras notícias que traziam depoimentos tranquilizantes sobre a não letalidade da doença a relatos sobre a proliferação de curas milagrosas, os paralelos com os dias atuais são desconcertantes. Da epidemia de 1918 sobraram, como abordamos recentemente, números ainda não bem esclarecidos e a impressão de que, guardados os anacronismos, a história é de fato cíclica.

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Qual terá sido a pandemia mais letal no Brasil: a atual ou a de 1918? https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/31/qual-e-a-pior-pandemia-no-brasil-a-atual-ou-a-de-19181919/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/31/qual-e-a-pior-pandemia-no-brasil-a-atual-ou-a-de-19181919/#respond Thu, 31 Dec 2020 13:00:55 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/gripeespanhola_15851780435e7be5bba7d37_1585178043_3x2_xs-300x213.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=259 Foi Nelson Teich, ministro abreviado da Saúde, quem suscitou a indagação do título. Num tuíte natalino, o médico carioca afirmou que a Covid-19 “é a pior pandemia que o Brasil já viveu”. Sustentou o enunciado em comparações com a gripe espanhola, que fez seus maiores estragos aqui entre a primavera de 1918 e o inverno de 1919.

Teich conclui que a mortalidade relativa ao tamanho da população daquela moléstia infecciosa, transposta para a realidade de hoje, significaria algo em torno de 240 mil mortes. O Brasil se aproxima de 200 mil óbitos notificados por Covid-19, mas é possível que essa cifra esteja subestimada –o ex-ministro acredita que em 20% no mínimo. Sendo assim, estaríamos fadados a ultrapassar nas próximas semanas a marca da epidemia de influenza de 102 anos atrás.

O que ele afirma estará correto se a estimativa das 35 mil mortes por gripe espanhola no Brasil, usada na base do raciocínio, for plausível. De onde ela vem? Origem recorrente é um verbete do “Atlas Histórico do Brasil”, da FGV. Mas o verbete não explicita a fonte do cálculo, e suas notas não me levaram a ela. Se você souber, escreva para o blog.

Trabalhando com documentos do governo paulista, a historiadora e demógrafa Maria Silvia Bassanezi computou 20.503 mortes notificadas por gripe no estado em 1918 e 1919 –no ano pré-epidêmico de 1917, os registros acusaram 509 óbitos por gripe. Havia em solo paulista 4,6 milhões de habitantes no fim da segunda década do século passado, 15% da população brasileira. Faz sentido que tenham ocorrido em São Paulo quase 60% das supostas 35 mil mortes brasileiras?

Bassanezi reúne apenas o que os relatórios governamentais notificam, o bastante para jogar água na hipótese de que as mortes no território brasileiro superaram 35 mil. Mas há também outro aspecto do problema: a subnotificação.

Em abril, na Folha, falei do trabalho de técnicos da administração paulista da época que revisaram os registros oficiais à luz de um raciocínio até hoje empregado. Uma epidemia costuma elevar, no período e no local que incide, a quantidade usual de mortes por fatores naturais, a despeito de as causas terem sido bem anotadas.

Observar o volume total de óbitos pouco antes, durante e pouco depois da onda epidêmica é um modo de estimar o impacto real da doença. Com cautelas, o excesso de mortes em relação a um período normal pode ser atribuído à infecção. Foi o que os técnicos fizeram num minucioso boletim estatístico publicado em 1919.

Os autores, da Diretoria do Serviço Sanitário, deduziram que, nos 92 dias do último trimestre de 1918, a gripe tinha matado 6.861 pessoas só na capital paulista, 29% mais que na estatística oficial. Para o Rio, então capital da República, a análise chegou à estimativa de 14.504 óbitos, 17% acima do que constava nas notificações.

Taxas agudíssimas de mortalidade, de 1.300 a 1.600 óbitos por 100 mil habitantes, concentradas num único trimestre e detectadas em apenas duas capitais também me levam a cogitar que está subestimada –possivelmente bastante subestimada– a cifra comumente divulgada de 35 mil vítimas da gripe espanhola em todo o Brasil.

 

 

 

 

 

 

 

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Na querela da vacina, positivistas mentiram, conspiraram e fizeram gol https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/24/na-querela-da-vacina-positivistas-mentiram-conspiraram-e-fizeram-gol/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/24/na-querela-da-vacina-positivistas-mentiram-conspiraram-e-fizeram-gol/#respond Thu, 24 Dec 2020 13:00:47 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/post_positivismo_blog-300x213.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=141 Não me parece simples entender o movimento antivacina que arrebatou um pedaço da sociedade carioca, inclusive de seu setor popular, em 1904. Há algumas interpretações na praça da historiografia. Jeffrey Needell (1987) contrasta o destino da elite golpista, frustrada na tentativa de escorraçar os oligarcas paulistas do governo mas anistiada de pronto, com o do bloco popular, castigado em várias frentes durante e após o levante do final daquele ano.

Teresa Meade (1989) insere o episódio numa marcha mais longa de resistência à deterioração e ao encarecimento das condições de vida, que culminaria na mobilização grevista e sindical de 1917. Focalizam as camadas populares, e o entrechoque com os saberes e interesses da elite, também os trabalhos difundidos de Sidney Chalhoub (1996) e Nicolau Sevcenko (1984)José Murilo de Carvalho (1987) fala do primeiro movimento moralista da nossa história.

Para esses intérpretes, com ressalva parcial de Carvalho, o movimento e a Revolta da Vacina davam vazão a conflitos, interesses e fatores mais profundos do que exibiam na fachada. Não era só pelos 20 centavos –não era só para protestar contra a exorbitância do governo, que em contextos civilizatórios não sai por aí espetando pessoas contra a vontade delas.

Entendo e concordo com o enquadramento geral: havia mais coisas entre o céu e a terra. Mas e se nos restringíssemos ao tema em si para tentar entender o debate da época? Por exemplo: como se comportaram os positivistas, essa mistura de seita religiosa com doutrina social e movimento político que influenciou os destinos do Brasil como talvez o de nenhuma outra nação entre o final do século 19 e início do 20? Eles apanharam à beça de contadores dessa história.

Positivistas foram acusados de disseminar falsidades, de pregar o obscurantismo antimicrobiano e de manipular o tema para desfechar um golpe pretoriano contra o presidente Rodrigues Alves. Se você procurar um pouco, vai achar elementos que confirmam essas acusações. Havia, contudo, nuances que um adepto tardio do positivismo, Ivan Lins (não o cantor, mas o escritor e ensaísta mineiro) soube explorar no volume A História do Positivismo no Brasil (1964).

A primeira linha de defesa é que havia divergências entre positivistas. O médico Luís Pereira Barreto defendia a vacina e sua obrigatoriedade. Já seu colega de profissão Joaquim Bagueira Leal, que como Teixeira Mendes e Miguel Lemos integrou a cúspide o Apostolado Positivista, atacava os dois flancos e atiçava o medo das consequências da agulhada.

Bagueira Leal, veja só a complicação, também se notabilizara pelo combate ao “despotismo sanitário”, que de fato esticava seus tentáculos sobre os cidadãos. E aqui vem a segunda linha de defesa de Ivan Lins: a oposição à obrigatoriedade da vacina era frequente entre os positivistas, significava apenas predicar o bom senso civilizatório e era compartilhada com outras figuras públicas da época insuspeitas de positivismo, como Rui Barbosa.

“Até aqui, até à pele que nos reveste pode chegar a ação do Estado. Sua polícia poderia lançar-me a mão à gola do casaco, encadear-me os punhos, lançar-me ferro aos pés. Mas introduzir-me nas veias, em nome da higiene pública, as drogas da sua medicina, isso não pode, sem abalançar-se ao que os mais antigos despotismos não ousaram”. Assim discursou o senador baiano Rui Barbosa em 16 de novembro de 1904, nos debates que levaram à revogação da obrigatoriedade da vacina e à instalação do estado de sítio.

Quem leu o voto do ministro Ricardo Lewandowski no último dia 16 sobre a obrigatoriedade da vacina contra a Covid-19 notou que as lições do episódio de 1904 foram emolduradas como paradigma e que a visão de Rui e de muitos positivistas neste aspecto prevaleceu: o corpo é inviolável; a dignidade humana, inexpugnável. O que o Estado pode fazer para estimular a vacinação é criar constrangimentos indiretos, aprovados em lei, contra quem decidir não se imunizar.

 

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Vacina obrigatória em 1904: projeto começou a andar, vacinação caiu https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/17/vacina-obrigatoria-em-1904-projeto-comecou-a-andar-vacinacao-caiu/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/17/vacina-obrigatoria-em-1904-projeto-comecou-a-andar-vacinacao-caiu/#respond Thu, 17 Dec 2020 13:22:07 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/bonde_revolta_vacina-300x213.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=18 Muito se comenta da Revolta da Vacina, que eclodiu em 10 de novembro de 1904 no Rio. Seu estopim veio de um furo do jornal A Notícia, na véspera, trazendo detalhes da regulamentação da lei, sancionada em 31 de outubro, que tornava obrigatória a vacinação contra a varíola no país e submetia sua aplicação aos instrumentos de intervenção urbana e domiciliar criados por um decreto de janeiro.

Mas começou antes disso o efeito contrário ao esperado pelos formuladores da proposta –liderada pelo poderoso chefe da Diretoria Geral de Saúde Pública, Oswaldo Cruz. A vacinação na cidade, que vinha crescendo nos primeiros meses daquele ano, despencou em agosto, quando o projeto da vacinação obrigatória, aprovado no Senado em 20 de julho, começou a tramitar na Câmara dos Deputados.

Neste momento também se intensificou o bombardeio de setores da sociedade carioca sobre as autoridades que encabeçavam a iniciativa. Oswaldo Cruz, o ministro J.J. Seabra (Justiça) e o presidente Rodrigues Alves, o Soneca, passaram a ser alvos frequentes de críticas agressivas, celebrizadas nas ilustrações satíricas em periódicos como O Malho, Tagarela e Revista da Semana –cujos acervos digitalizados podem ser acessados na hemeroteca da Biblioteca Nacional.

A quantidade de pessoas vacinadas no Rio continuou baixa por pelo menos mais três anos. O volume de imunizados no triênio 1905-1907 somados equivaleu a menos de 20% dos que tinham recebido a proteção contra a doença infecciosa em 1904. Os dados são da Diretoria Geral de Saúde Pública e estão citados no livro “Os Bestializados” (Cia das Letras), de José Murilo de Carvalho.

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