A história é a seguinte https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br Contamos por que todo passado é presente Tue, 10 Aug 2021 12:55:04 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 As ruínas de que o Ocidente brotou https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/05/12/as-ruinas-de-que-o-ocidente-brotou/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/05/12/as-ruinas-de-que-o-ocidente-brotou/#respond Wed, 12 May 2021 13:15:07 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/Varna_blog_3240px-Grave_43_Varna_Archaeology_Museum_36755886415-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=596 Walter Scheidel, pesquisador de história antiga da Universidade Stanford, publicou há algumas semanas um curto ensaio na revista aeon em que sublinha o papel decisivo do esfacelamento do Império Romano para o sucesso do Ocidente séculos depois. Confira o tamanho da provocação e do exercício de imaginação histórica:

“Se o Império Romano tivesse persistido, ou sido sucedido por uma potência acachapante similar, nós estaríamos com toda a probabilidade ainda arando os nossos campos, a maioria vivendo na pobreza e amiúde morrendo jovens. Nosso mundo seria mais previsível, mais estático. Seríamos poupados de parte das tormentas que nos assaltam, do racismo sistêmico e da mudança climática antropogênica à ameaça da guerra termonuclear. Então, novamente, estaríamos às voltas com antigos flagelos –ignorância, doença e necessidade, reis divinos e escravidão. Em vez da Covid-19, estaríamos enfrentando a varíola e a peste sem a medicina moderna.”

Scheidel tem uma notável sequência de publicações sobre demografia, economia, poder e aspectos comparativos de sociedades antigas. Num trabalho de 2009 com o colega Steven Friesen, procurou estimar o tamanho do que poderíamos chamar de classe média no apogeu do Império Romano, em meados do século 2, quando se calcula que 70 milhões de pessoas viviam sob o jugo da potência do Mediterrâneo.

Foi com o livro “The Great Leveller” [a grande niveladora], de 2017, que Scheidel se tornou mais conhecido fora do circuito dos classicistas. A versão brasileira, de 2020, preferiu o subtítulo da original —“Violência e História da Desigualdade – da Idade da Pedra ao Século XXI”–, mais elucidativo sobre a ambição das suas mais de 600 páginas.

Em suma, ele argumenta que a desigualdade é prima-irmã do crescimento econômico desde o advento das primeiras sociedades especializadas na agricultura, há cerca de 12 mil anos.

A hierarquia e a concentração de renda, poder e riqueza estão documentadas por exemplo nos achados arqueológicos em Varna, cidade banhada pelo Mar Negro na moderna Bulgária. Uma única tumba, provavelmente de um chefe, acumula mais de 25% de todo o ouro encontrado em mais de 200 covas, numa necrópole que data da Idade do Cobre, cerca de 6.500 anos atrás. A iniquidade na distribuição do ouro naquelas paragens, numa época de avanços da metalurgia, pode ser traduzida num índice de Gini de até 0,77.

E o que reduz a desigualdade? Segundo Scheidel, apenas processos de extrema e ubíqua violência –como epidemias, guerras e revoluções com vasta mobilização populacional, além de implosões do poder estatal– conseguiram reverter a marcha da desigualdade e ainda assim por tempo limitado. O engenho político –a educação, a democracia e as reformas sociais– tem milenarmente falhado na tarefa, segundo o historiador de Stanford.

No ensaio para a aeon, Scheidel acrescenta outro salto interpretativo à sua coleção. A fragmentação duradoura que sucedeu ao colapso da Roma ocidental ajudou a produzir a pujança da região, mas o processo desenvolveu também ameaças e mazelas de outra ordem. É uma palinha de seu livro mais recente (2019), “Escape from Rome: The Failure of Empire and the Road to Prosperity” [fuga de Roma: o fracasso do império e o caminho para a prosperidade].

Não é  original a ideia de que a competição entre pequenas nações vizinhas pouco poderosas, em guerra frequente entre si, favoreceu um certo controle do despotismo, além da inovação e da prosperidade econômica, no oeste europeu. Joel Mokyr, Robert Paul Thomas e Douglass North, entre outros, já haviam explorado essa trilha.

Scheidel talvez o faça com uma dose extra de ceticismo. Se você quer progresso, vai ter de lidar com problemas novos, complicados, que fazem parte do pacote e são de difícil mitigação. Não quer progredir? Então fique com os problemas antigos, que também não eram bolinho.

Não se pode ter tudo. Nunca. Haja espírito de porco!

]]>
0
Um clássico do domínio holandês no Nordeste https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/04/28/um-classico-do-dominio-holandes-no-nordeste/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/04/28/um-classico-do-dominio-holandes-no-nordeste/#respond Wed, 28 Apr 2021 13:00:58 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/franspostgonsalvesholanda-300x213.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=569 O lançamento mais recente do escritor Lira Neto, “Arrancados da Terra”, focaliza um pedaço do que foi Pernambuco sob o domínio da Holanda no século 17 para contar a saga de judeus ibéricos perseguidos que acabaram aportando na atual Nova York. Em 1947, José Antonio Gonsalves de Mello publicava “Tempo dos Flamengos”, um clássico da descrição desse interregno de 24 anos (1630-1654) em que invasores protestantes deram as cartas em parte do Nordeste do Brasil.

Gonsalves de Mello foi o primeiro historiador brasileiro a enfurnar-se no riquíssimo acervo do Livro de Atas do Alto Conselho Político do Brasil, que documenta, da perspectiva dos conquistadores, os últimos 19 anos da ocupação. O material pesquisado sobre a atuação dos judeus, narrada em poucas páginas no capítulo final de “Tempo dos Flamengos”, é esmiuçado a ponto de compulsar a participação de israelitas nos contratos para coletar impostos.

A amplitude da movimentação dos judeus na possessão sul-americana da Companhia das Índias Ocidentais permitia que atuassem inclusive no comércio varejista, atividade que lhes era vedada na própria Holanda. O domínio dos dois idiomas, o português e o holandês, e o tirocínio para negócios mal explorados pela companhia deram vantagens a empreendedores judeus, o que motivou ódios e revanchismo da parte de holandeses protestantes e de senhores de engenho brasileiros.

Esse é um dos vários aspectos de interesse, alguns pioneiros, de “Tempo dos Flamengos”. Gonsalves de Mello relata um forte adensamento urbano no Recife, com explosão dos preços de terrenos, aluguéis bem mais elevados que em Amsterdam e precarização habitacional, numa área equivalente à de um retângulo de 1.000 m de comprimento por 100 m de largura. “Não há empregado que possa alugar um quarto pequeno”, reclamava uma comunicação oficial de 1641.

A crueldade no transporte de escravos da África em yachts holandeses –embarcações batizadas com nomes como A Donzela de Enkhuysen, A Esperança Branca e Caridade– é exposta em cifras frias pelo conde Maurício de Nassau: “Vejo pelos registros que embarcaram para o Brasil 6.468 escravos no período de 7 de fevereiro de 1642 a 23 de julho de 1643, dos quais 1.524  faleceram”.

A dificuldade dos holandeses de substituir os senhores e escravos locais na produção do açúcar e o reconhecimento da  necessidade de habilidades específicas para a empreitada, estratégica para os invasores, ficam atestados: “A conquista do Brasil sem os portugueses trará poucas vantagens à Companhia. Sendo o principal negócio ali o fabrico do açúcar, faz-se necessário para isso muitos esforços e singular conhecimento (…) que foram adquiridos após longa aprendizagem [para o que] os holandeses, em tão pouco tempo, não estão habilitados”, escreveu  Nassau em 1646.

Temas como concessões de obras e serviços públicos, ordenamento urbano, instrução de povos indígenas, hábitos alimentares e práticas religiosas estão documentados com pormenores incomuns para o padrão do Brasil seiscentista.

Em 1642, preocupado com o que os economistas do século 20 viriam a chamar de “custos de transação” da administração da Justiça, o conde de Nassau desabafou para os mandachuvas na Holanda: “Os salários ou emolumentos dos secretários, notários, procuradores, solicitadores, tradutores, meirinhos, mensageiros, executores e outros oficiais da Justiça elevam-se a tanto que duvido que haja lugar no mundo onde tanto se lhes pague, além das multas, percentagens, extorsões, comissões dos escoltetos e seus subordinados, que não se contentam com pouco.”

]]>
0
Terapias químicas e sociais contra a peste https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/04/13/terapias-quimicas-e-sociais-contra-a-peste/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/04/13/terapias-quimicas-e-sociais-contra-a-peste/#respond Tue, 13 Apr 2021 14:30:29 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/troia_filme_post-300x213.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=552 A aventura dos helenos contra os troianos quase deu com os burros n’água por causa da peste. Homero começa a narrar a Ilíada pelo impasse em torno da praga que durante nove dias fez arderem sem cessar as piras dos mortos no exército invasor estacionado às portas da cidade fortificada.

Os comandantes gregos tinham aprontado com a pessoa errada. Agamenão, o rei maioral, tomara a filha de um sacerdote de Apolo como butim. Em vão, o sacerdote tentou negociar com o monarca o resgate da garota. Apelou então a seu pistolão no Olimpo, e o divino arqueiro desceu furibundo em socorro a seu protegido. “Chegou como chega a noite.”

Pôs-se a disparar as setas da pestilência contra os aqueus, que tombavam, e só parou quando o rei grego mudou de ideia e devolveu a filha ao sacerdote –não sem enfurecer na transação o herói Aquiles, o que deu pano para manga.

“Flecha de Apolo” (Apollo’s Arrow) é o título do livro que o médico, sociólogo e pesquisador da Universidade Yale Nicholas Christakis lançou no final de outubro sobre a Covid-19. As suas predições têm chamado a atenção de comentaristas, mas os mergulhos na experiência clínica do autor e na história me atraíram mais.

Christakis recruta a riquíssima tradição da medicina social britânica. William Farr, sob cujas lentes o impacto das desigualdades sociais na mortalidade e na saúde ficou mais evidente, propôs em meados do século 19 o método, já comentado aqui, de computar o excesso de mortes como meio de estimar o efeito das epidemias. Mais de um século depois, o médico e historiador Thomas McKeown provocou entusiastas da farmacologia com gráficos como o abaixo.

Note que a tuberculose, uma das grandes assassinas da história da humanidade, já havia declinado substancialmente na Inglaterra quando, após a Segunda Guerra Mundial, antibióticos e vacina foram disseminados para o seu enfrentamento. Algo semelhante ocorreu nas curvas históricas de outras doenças, como a febre tifoide, a escarlatina e o sarampo.

McKeown advogou que fatores não diretamente médicos precederam (e preponderaram sobre) a medicina –farmacologia e imunologia incluídas– na prevenção de mortandades causadas por moléstias infecciosas. Embora ele tenha superestimado a importância da nutrição e da habitação e subestimado fatores como o saneamento básico e outras intervenções do poder público, o sentido geral da sua conjectura veio se confirmando pela pesquisa especializada.

Tire o cavalo da chuva quem gosta de polarizar tudo. O debate instalado pelo historiador britânico não é sobre se drogas, vacinas, terapias e hospitais salvam vidas. Claro que salvam. Ele estava preocupado com estabelecer o peso de cada fator na evolução secular e escrevia numa altura do século 20 em que se louvava exageradamente o poder da medicina.

HIV, ebola, Mers, gripe suína, Sars 1 e 2 vieram mais tarde esclarecer que nosso pacto fáustico com a salvação pela química não era tão firme e não dispensava iniciativas organizacionais e individuais não farmacológicas no seu combate.

A nota serena de mirar o duelo milenar entre a humanidade e as doenças infecciosas, para mim o ponto alto do livro de Nicholas Christakis, é compreender que pode levar tempo, mas sociedades e patógenos quase sempre acabam encontrando um meio de conviver entre si com menos danos. Chegam a uma trégua relativa.

A arrogância de Agamenão não resiste a dez dias de flechadas de Apolo.

]]>
0
As vantagens das múltiplas hipóteses na história https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/02/28/as-vantagens-das-multiplas-hipoteses-na-historia/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/02/28/as-vantagens-das-multiplas-hipoteses-na-historia/#respond Sun, 28 Feb 2021 13:30:51 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/cellarius_hypothesis_ptolemaica-300x215.png https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=473 A escolha das hipóteses é um passo decisivo em qualquer pesquisa. Hipótese pode ser definida como uma ideia proposta para explicar um certo fenômeno (isto é, um fato ou evento), podendo ser ou não corroborada pelas evidências. Longe de ser uma decisão trivial, a escolha de uma hipótese tem implicações que podem distorcer os resultados da pesquisa de forma irreparável.

Os problemas relacionados à escolha de hipóteses são ainda maiores no caso de uma disciplina como a história econômica, que lida com ações individuais e coletivas, instituições e estruturas, que são de natureza distinta dos fenômenos físicos e naturais. Um dos maiores riscos é que a escolha prévia de uma ou outra hipótese preferencial acabe por determinar os resultados do que está sendo investigado.

Às vezes, as hipóteses são baseadas diretamente em uma teoria geral que fornece os elementos (fatores, variáveis) e as relações causais que vão delimitar os resultados da análise. Nesse caso, outros elementos e relações são excluídos do estudo e a explicação proposta, quando a pesquisa é empírica, resume-se a testar a significância da hipótese escolhida à luz dos dados coletados. Embora seja um exercício válido dentro da teoria adotada, o problema é que nada garante que as variáveis e relações selecionadas sejam realmente as mais relevantes para explicar um determinado problema, de maneira que a explicação (hipótese) oferecida pode estar comprometida na sua origem.

Em tese, explicações concorrentes, baseadas em distintas teorias, deveriam ser confrontadas e corroboradas ou não pelas evidências. Mas como as próprias evidências utilizadas dependem do que é considerado relevante pelas teorias, é comum que explicações diferentes convivam em mundos paralelos, sem comunicação entre seus defensores. O maior destaque de uma teoria em relação a outras, nesse caso, pode depender em grande medida de razões institucionais, como por exemplo a influência de centros de pesquisa e universidades na formação de estudantes que irão reproduzir teorias, métodos e explicações mais ou menos em voga.

Quando a pesquisa mais se assemelha à montagem de um quebra-cabeças (faltando a maioria das peças), como no estudo da evolução das espécies ou da história, o papel das ideias preconcebidas (ou teorias) na formulação das hipóteses tende a ser ainda maior, podendo até obscurecer o entendimento da realidade. Não é incomum que as convicções prévias sejam tão grandes que levam a uma escolha seletiva de evidências, transformando, na prática, o que deveria ser uma pesquisa em uma mera busca de confirmação das hipóteses. Em tais casos, as hipóteses tornam-se impossíveis de serem rejeitadas, pois elas já foram previamente definidas como verdadeiras.

É nessa situação que um método alternativo na seleção de hipóteses pode ser mais adequado para alguém que estude algum tema histórico. A estratégia consiste na escolha deliberada de múltiplas hipóteses que deem explicações possíveis, distintas e concorrentes para um mesmo fenômeno. Esse é o tema de um artigo de 2016 na Nature, com o título “Research protocols: A forest of hypotheses”. Na verdade, o método faz parte de práticas antigas de pesquisa em diferentes áreas, mas que continuam pouco conhecidas ou aceitas. Apesar do artigo da Nature tratar da pesquisa nas ciências naturais, as questões também são comuns na história e em outras disciplinas das ciências humanas.

Em vez de apegar-se a uma explicação única, que corre o risco de tornar-se uma busca disfarçada de confirmação, o uso de múltiplas hipóteses requer uma atitude diferente: admite-se a presença de possíveis vieses e tenta-se controlá-los considerando explicações alternativas do problema estudado. Comparando essas hipóteses distintas com as evidências, pode-se ter um guia mais fiel para julgar se as explicações são plausíveis e consistentes. Ao mesmo tempo, a pessoa vê-se forçada a questionar suas convicções prévias e avaliar o problema de forma mais distanciada. Essa atitude pode ajudar, inclusive, a encontrar novas evidências que são excluídas quando se escolhe antecipadamente uma causa única.

Seria ingênuo imaginar que simplesmente formular múltiplas hipóteses seja capaz de eliminar, por si só, os problemas típicos de uma pesquisa notados antes. Por exemplo, a estratégia requer um grau de distanciamento em relação a todas as hipóteses escolhidas que pode ser difícil de ser obtido na prática. Não bastaria adicionar explicações ao lado da preferida para depois descartá-las ou desmoralizá-las.

Da mesma forma, nada garante que as múltiplas hipóteses selecionadas incluam sempre as que sejam, de fato, as mais relevantes para explicar um certo fenômeno. Pensar o contrário seria imaginar que alguém possa ser onisciente. Mas, pelo menos, o hábito de reconhecer as possíveis distorções do julgamento individual já é um grande passo. Considerar hipóteses concorrentes e tentar contrastá-las de forma equilibrada com as evidências são um ponto de partida mais honesto e produtivo para tentar entender a realidade, inclusive quando se busca compreender melhor o passado.

]]>
0
Trabalho qualificado também marcou escravidão no Brasil https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/02/11/efeitos-da-escravidao-brasileira/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/02/11/efeitos-da-escravidao-brasileira/#respond Thu, 11 Feb 2021 13:00:58 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/escravos_máquinas_1-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=461 O estudo dos efeitos do sistema escravista sobre africanos e descendentes mantidos sob a opressão do cativeiro faz parte de uma tradição bem estabelecida no Brasil. Curiosamente, a tendência da literatura foi enfatizar mais aspectos psicológicos e morais do que a realidade vivida pelos escravizados.

Os poucos autores do século 19 que atentaram para questões como saúde, alimentação, integridade física, qualificações ou mortalidade elevada dos escravos geralmente o fizeram em obras destinadas a orientar os proprietários sobre a produção e o trabalho nas fazendas, como por exemplo Carlos Augusto Taunay, em Manual do Agricultor Brazileiro (2a edição, 1839), Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, em Memoria sobre a Fundação e Costeio de uma Fazenda na Provincia do Rio de Janeiro (3a edição, 1878; 1a edição em 1847) e Antonio Caetano da Fonseca, no seu Manual do Agricultor dos Generos Alimenticios (1863).

Mais comuns entre os autores foram opiniões sobre a psicologia, a moral e as atitudes dos escravos em relação à família e a outros aspectos da vida social e econômica. Essa tendência continuou nos estudos das ciências sociais no século 20.

A ausência de dados sobre a realidade nas fazendas não impediu que vários desses autores, antigos e mais recentes, especulassem sobre as capacidades e atitudes dos escravos em relação ao trabalho, seja durante a escravidão ou após a abolição em 1888. Mesmo quando existiam informações mais detalhadas, como as do censo demográfico de 1872 ou de testemunhos valiosos de viajantes contemporâneos, o habitual foi que ideias arraigadas prevalecessem ou pelo menos diminuíssem a disposição de buscar evidências que conflitassem com o senso comum.

Um exemplo é Perdigão Malheiro, que em sua obra A Escravidão no Brasil. Ensaio Historico-Juridico-Social, publicada em 1866 e 1867 (3 volumes), analisou em profundidade as ideologias, as leis e o sistema de exploração do trabalho de escravos no Brasil em comparação com outras regiões das Américas. O autor não demonstrou dúvida a certa altura de seu livro em considerar o escravizado como um indivíduo “tão inteligente como qualquer outro; dotado de qualidades estimáveis, coragem, paciência, resignação, sobriedade; capaz de todo aperfeiçoamento intelectual e moral, próprios da natureza humana.”

No mesmo livro, porém, ao refletir sobre a proposta de abolição da instituição escravista que ele defendia em tese como uma necessidade vital, Perdigão Malheiro alegou que o fim imediato do sistema seria “absolutamente inadmissível na atualidade”. Além da “desorganização do trabalho e da produção”, da ameaça à “riqueza pública e privada”, da “desordem nas famílias” e do ataque “à ordem pública”, o autor dizia que a abolição imediata seria danosa aos próprios escravos. A capacidade de “aperfeiçoamento intelectual e moral” antes citada foi esquecida e Perdigão Malheiro só enxergou a “vagabundagem, os vícios, o crime, a prisão, a devassidão, a miséria, eis a sorte que naturalmente… esperaria” os escravos se alcançassem a liberdade naquele momento.

A visão negativa das habilidades e capacidades dos escravizados foi compartilhada e difundiu-se no século 20 mesmo entre as ciências sociais. Para Florestan Fernandes, em A Integracão do Negro na Sociedade de Classes (1964), ex-escravos após a abolição teriam se autoexcluído do mercado de trabalho regular como uma expressão de liberdade e dignidade, atitude que sob as novas condições de um mercado competitivo conduziu “seus agentes humanos pelo plano inclinado da miséria, da corrupção e do desalento coletivo”.

Sobre as habilidades de trabalho dos ex-escravos e seus descendentes, Florestan Fernandes recorreu a algumas entrevistas para concluir que “eram raros os negros que tinham profissão, como pedreiro, carpinteiro, barbeiro, alfaiate, sapateiro. Eram profissões difíceis e os negrinhos aprendizes tinham dificuldade em conseguir colocação”.

Celso Furtado foi outro autor clássico que adotou uma visão semelhante, em sua Formação Econômica do Brasil (1959): “Cabe tão somente lembrar que o reduzido desenvolvimento mental da população submetida à escravidão provocará a segregação parcial desta após a abolição”, agravada pela sua “forte preferência pelo ócio”.

As evidências históricas, no entanto, dão pouco crédito às opiniões negativas desses autores. Historiadores como Manolo Florentino & José Roberto Góes e Carlos Lima, utilizando inventários post-mortem e outras fontes, já demonstraram há tempos que escravos exerciam profissões qualificadas em número expressivo em áreas rurais e urbanas.

Outras fontes até mais acessíveis do que inventários trazem evidências ainda mais claras. O recenseamento demográfico de 1872, o primeiro de âmbito nacional do Brasil independente, é um exemplo. Além de conter informações como idade, cor, religião e estado civil da população de comarcas e províncias de todo país, o censo de 1872 registrou as ocupações de livres e escravos em mais de 20 categorias de trabalho, de empregados públicos e trabalhadores agrícolas a operários e serviços domésticos.

Uma das categorias da classificação ocupacional do censo de 1872 reuniu o trabalho manual mais qualificado e valorizado no século 19: o dos “operários”, parte das chamadas “profissões manuais ou mecânicas” do recenseamento. Essa categoria abrangia o trabalho geralmente de natureza artesanal, que exigia longo período de aprendizado, destreza e habilidade. Ocupações como as de carpinteiro, ferreiro, alfaiate, sapateiro e mecânico recebiam, portanto, maior remuneração no mercado de trabalho livre e valorizavam os escravos que as executavam.

A título de exemplo, entre os maiores de 10 anos de ambos os sexos, a província de São Paulo possuía 485.632 e 127.467 trabalhadores livres e escravos, respectivamente, em todos seus municípios em 1872. Desses totais, 4,6% eram trabalhadores artesãos livres e 4,3% eram artesãos escravos. Isto é, uma proporção praticamente idêntica de livres e escravos exercia ocupações qualificadas, que exigiam habilidades especiais, experiência e autonomia na atividade do trabalho.

A capacidade intelectual e de aprendizado dos escravos foi testada no ambiente mais hostil e violento do trabalho sob cativeiro, como de fato havia sugerido Perdigão Malheiro em 1867. Se após a Abolição, ex-escravos e descendentes enfrentaram obstáculos e desigualdade, como evidentemente ocorreu e com consequências visíveis até hoje, as causas não devem ser atribuídas às suas atitudes ou características individuais.

]]>
0
O último Natal de Robespierre https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/01/26/o-ultimo-natal-de-robespierre/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/01/26/o-ultimo-natal-de-robespierre/#respond Tue, 26 Jan 2021 13:00:07 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/blog_robespierre-300x213.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=390 Faz 80 anos que o historiador norte-americano Robert Roswell Palmer (1909-2002) publicou seu relato dos personagens que comandaram o famigerado Comitê de Salvação Pública durante o Terror –de meados de 1793 a meados de 1794– na Revolução Francesa. “Twelve who Ruled” [os doze que governavam] não tem notas de rodapé nem listagem bibliográfica ao final, mas ajudou a formar e informar gerações de universitários e pesquisadores nos Estados Unidos.

A fórmula do sucesso não está só na fluidez dos seus 16 capítulos, mas também no argumento de que a importância desse período não se restringe à extrema violência que o marcou. Naqueles meses frenéticos, a França escapou da fragmentação interna e da invasão externa, elevou a uma escala inédita a mobilização nacional de recursos humanos e materiais para os objetivos traçados pelo governo e travou de modo específico a batalha entre o poder popular e o oligárquico.

Escrevendo quando o mundo embarcava numa convulsão bélica deflagrada por regimes totalitários, Palmer tinha a sensibilidade aguçada para as pistas que a catarse da França setecentista pudesse ter deixado. Se quiser ler um capítulo iluminado por essa perspectiva, tente o 11º, atravessado por dois discursos invernais de Maximilien Robespierre perante a Convenção. O primeiro deles, mais conhecido, é o do Natal de 1793, o dia 5 do mês Nevoso no calendário republicano.

Robespierre, a estrela jacobina, lançava ali esboços de uma doutrina do governo revolucionário explorando a dicotomia entre um desejável mas ainda distante regime constitucional, de um lado, e um período de luta pela sobrevivência como aquele, do outro. Leia alguns trechos, numa tradução livre do francês:

“O objetivo do governo constitucional é conservar a República; o do governo revolucionário é fundá-la.”

“A revolução é a guerra da liberdade contra seus inimigos; a constituição é o regime da liberdade vitoriosa e pacífica.”

“O governo revolucionário necessita de uma atividade extraordinária (…). Ele está submetido a regras menos uniformes e menos rigorosas, porque as circunstâncias em que se encontra são tumultuosas e móveis e sobretudo porque ele é forçado a mobilizar sem cessar recursos novos e tempestivos para perigos novos e urgentes.”

“Sob o regime constitucional, praticamente basta proteger os indivíduos contra o abuso do poder público; sob o regime revolucionário, o próprio poder público é obrigado a se defender contra todas as facções que o atacam.”

“O governo revolucionário deve aos bons cidadãos toda a proteção nacional; deve aos inimigos do povo apenas a morte.”

“Se o governo revolucionário deve estar mais ativo na sua marcha e mais livre nos seus movimentos que o governo regular, ele seria menos justo e menos legitimo? Não. Ele se apoia sobre a mais santa de todas as leis, a salvação do povo; sobre o mais irrefutável de todos os títulos, a necessidade.”

“O navio constitucional não foi construído para ficar sempre no estaleiro; mas somos obrigados a lançá-lo ao mar em plena tempestade e sob a influência de ventos contrários?”

“Ele deve navegar entre dois escolhos: a fraqueza e a temeridade, o moderantismo e o excesso. O moderantismo está para a moderação assim como a impotência está para a castidade; e o excesso remonta à energia como a hidropisia à saúde.”

“Quem então decodificará todas essas nuances? Quem traçará a linha de demarcação entre todos os excessos contrários? O amor à pátria e à verdade.”

Quem passou atento pela história dos séculos 19 e 20 ouviu ecos desse discurso. É algo na linha:  “Vamos fazer uma ditadurazinha momentânea aqui, só enquanto nós, intérpretes legítimos dos interesses do povo, expurgamos os males do mundo; depois disso inaugura-se a nova fase da marcha coletiva, pacífica e próspera”.

Não é à toa que Palmer classifica o discurso do último Natal de Robespierre –ele perderia a cabeça no verão seguinte– como um marco para a retórica de autojustificação de regimes autocráticos modernos.

]]>
0
Acesso a documentos digitais revoluciona pesquisa histórica https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/26/acesso-a-documentos-digitais-revoluciona-pesquisa-historica/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/26/acesso-a-documentos-digitais-revoluciona-pesquisa-historica/#respond Sat, 26 Dec 2020 13:00:19 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/photo_2020-12-25_19-38-34-300x213.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=170 Documentos digitalizados têm revolucionado a pesquisa histórica nos últimos anos. Um exemplo já bem conhecido no Brasil é a Hemeroteca Digital, um inestimável serviço da Biblioteca Nacional que traz o acervo de jornais fundamentais para o estudo dos eventos políticos, sociais e econômicos da história brasileira, como o Correio Paulistano e o Jornal do Commercio. Recentemente, o Diário de Pernambuco, considerado o jornal mais antigo (desde 7 de novembro de 1825) em circulação da América Latina, também foi incorporado à Hemeroteca.

Há várias outras iniciativas igualmente importantes. Muitas fontes que eram o sonho de pesquisadores, como por exemplo os Anais da Câmara dos Deputados e do Senado (Império e República), podem ser acessadas agora facilmente em suas edições originais. Nessas publicações da Câmara e do Senado encontram-se todos os personagens, debates, políticas e legislações que passaram por essas casas legislativas desde 1823. São informações e dados que precisam ser consultados em qualquer tentativa de ir além de generalizações superficiais em não poucos temas da história brasileira.

Da mesma forma, as Instruções e Circulares da Sumoc (Superintendência da Moeda e do Crédito), no site do Banco Central, são uma fonte básica para reconstituir a complicada história da principal política econômica (a cambial) no Brasil entre 1945 e 1965. Outra referência valiosa para a análise da economia do período do pós-guerra, e que é curiosamente subutilizada hoje em dia, é a revista Conjuntura Econômica da FGV, uma publicação mensal que é chave para acompanhar a política econômica e os dados da economia brasileira, sobretudo de 1947 à década de 1980. A coleção completa da Conjuntura Econômica está disponível em um site que permite, além do mais, a busca por palavras-chave em várias edições combinadas.

Há ainda preciosidades como as bibliotecas digitais de “Obras Raras” do Senado, da Câmara e do STF, bem como a Coleção Brasiliana da antiga Companhia Editora Nacional, digitalizada pela UFRJ. Outro exemplo é a Biblioteca Básica Brasileira, idealizada por Darcy Ribeiro e que foi abordada neste blog por Hanna Manente. Essas coleções reúnem livros de autores muitas vezes esquecidos, mas que continuam necessários para se investigar temas políticos, econômicos e sociais da colônia, do século XIX e da primeira metade do século XX no Brasil.

Em diversos casos, as obras dessas coleções que começaram a ser organizadas na década de 1930 permanecem entre as principais referências para o estudo da sociedade brasileira. Apenas para citar exemplos relacionados à história econômica, em três assuntos diferentes: João de Azevedo Carneiro Maia, O Municipio. Estudos sobre Administração Local (1883); Augusto Olympio Viveiros de CastroTratado dos Impostos. Estudo Theorico e Pratico (1910) e João Pandiá Calógeras, A Política Monetária do Brasil (1910). A digitalização e o amplo acesso de livros como esses podem ajudar a reduzir a tendência da historiografia recente de negligenciar obras fundamentais pela sua idade.

]]>
0
Na querela da vacina, positivistas mentiram, conspiraram e fizeram gol https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/24/na-querela-da-vacina-positivistas-mentiram-conspiraram-e-fizeram-gol/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/24/na-querela-da-vacina-positivistas-mentiram-conspiraram-e-fizeram-gol/#respond Thu, 24 Dec 2020 13:00:47 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/post_positivismo_blog-300x213.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=141 Não me parece simples entender o movimento antivacina que arrebatou um pedaço da sociedade carioca, inclusive de seu setor popular, em 1904. Há algumas interpretações na praça da historiografia. Jeffrey Needell (1987) contrasta o destino da elite golpista, frustrada na tentativa de escorraçar os oligarcas paulistas do governo mas anistiada de pronto, com o do bloco popular, castigado em várias frentes durante e após o levante do final daquele ano.

Teresa Meade (1989) insere o episódio numa marcha mais longa de resistência à deterioração e ao encarecimento das condições de vida, que culminaria na mobilização grevista e sindical de 1917. Focalizam as camadas populares, e o entrechoque com os saberes e interesses da elite, também os trabalhos difundidos de Sidney Chalhoub (1996) e Nicolau Sevcenko (1984)José Murilo de Carvalho (1987) fala do primeiro movimento moralista da nossa história.

Para esses intérpretes, com ressalva parcial de Carvalho, o movimento e a Revolta da Vacina davam vazão a conflitos, interesses e fatores mais profundos do que exibiam na fachada. Não era só pelos 20 centavos –não era só para protestar contra a exorbitância do governo, que em contextos civilizatórios não sai por aí espetando pessoas contra a vontade delas.

Entendo e concordo com o enquadramento geral: havia mais coisas entre o céu e a terra. Mas e se nos restringíssemos ao tema em si para tentar entender o debate da época? Por exemplo: como se comportaram os positivistas, essa mistura de seita religiosa com doutrina social e movimento político que influenciou os destinos do Brasil como talvez o de nenhuma outra nação entre o final do século 19 e início do 20? Eles apanharam à beça de contadores dessa história.

Positivistas foram acusados de disseminar falsidades, de pregar o obscurantismo antimicrobiano e de manipular o tema para desfechar um golpe pretoriano contra o presidente Rodrigues Alves. Se você procurar um pouco, vai achar elementos que confirmam essas acusações. Havia, contudo, nuances que um adepto tardio do positivismo, Ivan Lins (não o cantor, mas o escritor e ensaísta mineiro) soube explorar no volume A História do Positivismo no Brasil (1964).

A primeira linha de defesa é que havia divergências entre positivistas. O médico Luís Pereira Barreto defendia a vacina e sua obrigatoriedade. Já seu colega de profissão Joaquim Bagueira Leal, que como Teixeira Mendes e Miguel Lemos integrou a cúspide o Apostolado Positivista, atacava os dois flancos e atiçava o medo das consequências da agulhada.

Bagueira Leal, veja só a complicação, também se notabilizara pelo combate ao “despotismo sanitário”, que de fato esticava seus tentáculos sobre os cidadãos. E aqui vem a segunda linha de defesa de Ivan Lins: a oposição à obrigatoriedade da vacina era frequente entre os positivistas, significava apenas predicar o bom senso civilizatório e era compartilhada com outras figuras públicas da época insuspeitas de positivismo, como Rui Barbosa.

“Até aqui, até à pele que nos reveste pode chegar a ação do Estado. Sua polícia poderia lançar-me a mão à gola do casaco, encadear-me os punhos, lançar-me ferro aos pés. Mas introduzir-me nas veias, em nome da higiene pública, as drogas da sua medicina, isso não pode, sem abalançar-se ao que os mais antigos despotismos não ousaram”. Assim discursou o senador baiano Rui Barbosa em 16 de novembro de 1904, nos debates que levaram à revogação da obrigatoriedade da vacina e à instalação do estado de sítio.

Quem leu o voto do ministro Ricardo Lewandowski no último dia 16 sobre a obrigatoriedade da vacina contra a Covid-19 notou que as lições do episódio de 1904 foram emolduradas como paradigma e que a visão de Rui e de muitos positivistas neste aspecto prevaleceu: o corpo é inviolável; a dignidade humana, inexpugnável. O que o Estado pode fazer para estimular a vacinação é criar constrangimentos indiretos, aprovados em lei, contra quem decidir não se imunizar.

 

]]>
0
Darcy Ribeiro e a Biblioteca Básica Brasileira https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/23/darcy-ribeiro-e-a-biblioteca-basica-brasileira/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/23/darcy-ribeiro-e-a-biblioteca-basica-brasileira/#respond Wed, 23 Dec 2020 13:10:46 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/6115950ba29d7dd1d9e4652dce5ea371-gpLarge-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=94 Pode ser que para muitos a incógnita Brasil seja relativamente recente. Como explicar o país; quem são os brasileiros; o que pensam; do que vivem? A busca pela elusiva identidade nacional, no entanto, foi, e continua sendo, um dos grandes alicerces das nossas ciências sociais. Marco desta busca foram as imponentes coleções editadas a partir de 1931, tal qual a Coleção Brasiliana publicada pela Companhia Editora Nacional (e digitalizada pelo Projeto Brasiliana Eletrônica), e a Coleção Documentos Brasileiros editada pela Livraria José Olympio Editora.

Os quase cem anos de investigação produziram grandes intérpretes, perpetuaram mitos e introduziram ainda mais dúvidas. Parte do problema, eu diria, provém da dificuldade de impor uma interpretação a um objeto que se desconhece. Como se teoriza uma identidade nacional, sem uma nação que se entende como tal?

No início da década de 1960, provavelmente movido por ideias similares, Darcy Ribeiro, então reitor da UNB, idealizou o projeto Biblioteca Básica Brasileira (BBB). A intenção do antropólogo era publicar e distribuir gratuitamente para escolas e bibliotecas públicas obras clássicas que pensam e problematizam aspectos da história e da identidade brasileira. O intuito não era apresentar uma resposta monolítica sobre o ‘ser Brasil’, mas oferecer uma gama de interpretações e possibilidades. A identidade, tanto individual quanto coletiva, não seria imposta, mas construída.

O golpe de 64, para infortúnio dos que acreditam em educação transformadora, pôs fim à Biblioteca cívica de Darcy Ribeiro. Felizmente, após um hiato de 50 anos, o projeto foi retomado e reformulado pela Fundação Darcy Ribeiro. Em 2014, com apoio da Lei de Inventivo à Cultura/Lei Rouanet, os primeiros 50 títulos da coleção BBB foram publicados. De “Viagem ao Brasil” de Hans Staden –relato de um viajante alemão nos idos 1500s— ao clássico “Os sertões” de Euclides da Cunha, todos os volumes podem ser acessados gratuitamente no site da Fundação.

A seleção não é perfeita. Faltam nomes clássicos da historiografia como Raymundo Faoro e Sérgio Buarque de Holanda. Faltam também nomes que deveriam ser clássicos, mas ainda não são, como Carolina Maria de Jesus. Ainda assim, para aqueles que se pegam tentando entender o que parece ser inteligível, é um ótimo começo.

]]>
0
Feita com seriedade, toda história é real e presente https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/16/feita-com-seriedade-toda-historia-e-real-e-presente/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/16/feita-com-seriedade-toda-historia-e-real-e-presente/#respond Wed, 16 Dec 2020 13:00:23 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/Captura-de-Tela-2020-12-12-às-17.46.43-300x215.png https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=70 Todo historiador já dedicou horas, dias, semanas a tarefas que, para muitos, soariam injustificáveis.

Conheço quem tenha passado semanas construindo uma única tabela sem que ninguém, nas palavras do autor desiludido, tenha notado o esforço implícito. Colegas que gastaram dias refazendo as origens de uma nota de rodapé obscura –alguns com êxito, outros nem tanto. Sem falar nas referências, aquelas que o indivíduo tem convicção de já ter lido, sem conseguir precisar nem autor, e nem título. Ainda mais cruel, quantas vezes aqueles que as enfim encontraram, lamentando disseram: “não era bem isso que eu lembrava.”

E o que dizer sobre os Arquivos, e suas coleções; aquele amontoado de papéis que conseguem simultaneamente não ter valor algum, mas ser inestimáveis? Anos contados em fotos de papéis carcomidos pelo tempo e por toda uma gama de substâncias não identificadas que tornam necessário o uso de luva e máscara a fim de garantir a integridade física –tanto do objeto quanto do sujeito– ao manuseá-los?

Fazer história é colecionar uma vida de fragmentos que demoram por vezes décadas, quiçá milênios para se encontrarem. Há quem veja nos cacos, nas peças à espera de montagem, o sentido do ofício. Há quem diga que a beleza está na imagem (re)construída.

Seja ela completa ou fragmentada, quando feita com seriedade e respeito às fontes, toda história é real, e toda história é presente.

]]>
0