A história é a seguinte https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br Contamos por que todo passado é presente Tue, 10 Aug 2021 12:55:04 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A república e o pessimismo de Maquiavel https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/06/27/a-republica-e-o-pessimismo-de-maquiavel/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/06/27/a-republica-e-o-pessimismo-de-maquiavel/#respond Sun, 27 Jun 2021 13:00:50 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/vasari_fizenzi-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=652 A corrupção foi um dos temas que mais preocuparam os pensadores clássicos que buscaram entender os fundamentos do bom governo e da sociedade virtuosa. Nos séculos XV e XVI, o termo já era comumente utilizado para referir-se a uma situação em que as relações privadas sobrepõem-se às relações públicas, em conflito com o interesse comum. O seu significado abrangia tanto a forma direta de obtenção de favores e privilégios quanto o mecanismo mais sutil e permanente da distorção de leis, instituições e normas em benefício de poucos, dando origem a uma oligarquia, isto é, o governo de poucos para poucos.

A apropriação de vantagens e privilégios seria, assim, a outra face da atividade de indivíduos e associações de indivíduos que legislam, controlam a justiça e administram os negócios públicos em benefício próprio – anulando, desta forma, o governo como expressão da autonomia e da autoridade dos cidadãos.

Os humanistas dos séculos XV e XVI, em especial os da república florentina, empenharam-se no diagnóstico das causas das ordens políticas corruptas, das formas de preveni-las e de suas consequências deletérias para o funcionamento e vigor de cidades e estados. Eles costumavam não ter dúvidas de que a apropriação das instituições do governo e da justiça por uma minoria condenava as comunidades políticas à desagregação e ao declínio.

O assunto foi tratado com destaque, entre outros, por Maquiavel, em seu “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio” (c. 1518). Para Maquiavel, o problema era que, ao ser instalada a corrupção nas instituições de uma república, as dificuldades para eliminá-la seriam imensas.

As dificuldades surgiriam pelo fato de que, assim como os costumes necessitam das leis, as leis dependem dos costumes. Sendo esses últimos corrompidos pelas atitudes que desviam as instituições em favor de poucos, as próprias leis eram incapazes de regenerar, sozinhas, a ordem política.

Diz Maquiavel: “[em Roma] Podia um tribuno, ou qualquer outro cidadão, propor uma lei para o povo; sobre a qual qualquer cidadão poderia falar, em favor ou contra ela, antes de ser deliberada. Essa ordem era boa quando os cidadãos eram bons, pois sempre foi certo que qualquer um que pretendesse uma boa lei para o povo poderia propô-la; e era certo que qualquer um poderia dar sua opinião sobre ela, de forma que tendo o povo ouvido todos os lados, poderia então escolher a melhor. Mas tornando-se maus os cidadãos, essa ordem tornou-se a pior; pois somente os poderosos propunham leis, não para a liberdade comum, mas para os próprios poderosos, e por temor ninguém podia falar contra eles”.

Para manter-se livre da corrupção, Roma ou qualquer comunidade em uma situação similar, na opinião de Maquiavel, deveria ter modificado suas instituições e seus modos de vida para prevenir-se de seus efeitos nocivos. Mas ao consolidar-se o sistema corrupto, só restaria a opção de renovar radicalmente as instituições, seja de forma abrupta, seja de maneira paulatina conforme cada uma das distorções fossem conhecidas.

Aí é que Maquiavel mostrou-se pessimista quanto aos resultados: “eu digo que uma ou outra dessas coisas [alternativas] é quase impossível”. Mesmo entre os potenciais interessados na eliminação da ordem corrupta, o apoio era improvável, “pois homens, acostumados a viver de um modo, não desejam mudar”. Os meios ordinários de mudança (leis, assembleias) também seriam ineficazes, por estarem sob a influência perniciosa da oligarquia, que reage e atemoriza os que desejam a renovação da ordem política.

“De tudo que foi escrito acima, nasce a dificuldade, ou impossibilidade, de manter-se uma república em uma cidade corrompida, ou de criá-la de novo”, conclui Maquiavel.

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O último Natal de Robespierre https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/01/26/o-ultimo-natal-de-robespierre/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/01/26/o-ultimo-natal-de-robespierre/#respond Tue, 26 Jan 2021 13:00:07 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/blog_robespierre-300x213.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=390 Faz 80 anos que o historiador norte-americano Robert Roswell Palmer (1909-2002) publicou seu relato dos personagens que comandaram o famigerado Comitê de Salvação Pública durante o Terror –de meados de 1793 a meados de 1794– na Revolução Francesa. “Twelve who Ruled” [os doze que governavam] não tem notas de rodapé nem listagem bibliográfica ao final, mas ajudou a formar e informar gerações de universitários e pesquisadores nos Estados Unidos.

A fórmula do sucesso não está só na fluidez dos seus 16 capítulos, mas também no argumento de que a importância desse período não se restringe à extrema violência que o marcou. Naqueles meses frenéticos, a França escapou da fragmentação interna e da invasão externa, elevou a uma escala inédita a mobilização nacional de recursos humanos e materiais para os objetivos traçados pelo governo e travou de modo específico a batalha entre o poder popular e o oligárquico.

Escrevendo quando o mundo embarcava numa convulsão bélica deflagrada por regimes totalitários, Palmer tinha a sensibilidade aguçada para as pistas que a catarse da França setecentista pudesse ter deixado. Se quiser ler um capítulo iluminado por essa perspectiva, tente o 11º, atravessado por dois discursos invernais de Maximilien Robespierre perante a Convenção. O primeiro deles, mais conhecido, é o do Natal de 1793, o dia 5 do mês Nevoso no calendário republicano.

Robespierre, a estrela jacobina, lançava ali esboços de uma doutrina do governo revolucionário explorando a dicotomia entre um desejável mas ainda distante regime constitucional, de um lado, e um período de luta pela sobrevivência como aquele, do outro. Leia alguns trechos, numa tradução livre do francês:

“O objetivo do governo constitucional é conservar a República; o do governo revolucionário é fundá-la.”

“A revolução é a guerra da liberdade contra seus inimigos; a constituição é o regime da liberdade vitoriosa e pacífica.”

“O governo revolucionário necessita de uma atividade extraordinária (…). Ele está submetido a regras menos uniformes e menos rigorosas, porque as circunstâncias em que se encontra são tumultuosas e móveis e sobretudo porque ele é forçado a mobilizar sem cessar recursos novos e tempestivos para perigos novos e urgentes.”

“Sob o regime constitucional, praticamente basta proteger os indivíduos contra o abuso do poder público; sob o regime revolucionário, o próprio poder público é obrigado a se defender contra todas as facções que o atacam.”

“O governo revolucionário deve aos bons cidadãos toda a proteção nacional; deve aos inimigos do povo apenas a morte.”

“Se o governo revolucionário deve estar mais ativo na sua marcha e mais livre nos seus movimentos que o governo regular, ele seria menos justo e menos legitimo? Não. Ele se apoia sobre a mais santa de todas as leis, a salvação do povo; sobre o mais irrefutável de todos os títulos, a necessidade.”

“O navio constitucional não foi construído para ficar sempre no estaleiro; mas somos obrigados a lançá-lo ao mar em plena tempestade e sob a influência de ventos contrários?”

“Ele deve navegar entre dois escolhos: a fraqueza e a temeridade, o moderantismo e o excesso. O moderantismo está para a moderação assim como a impotência está para a castidade; e o excesso remonta à energia como a hidropisia à saúde.”

“Quem então decodificará todas essas nuances? Quem traçará a linha de demarcação entre todos os excessos contrários? O amor à pátria e à verdade.”

Quem passou atento pela história dos séculos 19 e 20 ouviu ecos desse discurso. É algo na linha:  “Vamos fazer uma ditadurazinha momentânea aqui, só enquanto nós, intérpretes legítimos dos interesses do povo, expurgamos os males do mundo; depois disso inaugura-se a nova fase da marcha coletiva, pacífica e próspera”.

Não é à toa que Palmer classifica o discurso do último Natal de Robespierre –ele perderia a cabeça no verão seguinte– como um marco para a retórica de autojustificação de regimes autocráticos modernos.

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