A história é a seguinte https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br Contamos por que todo passado é presente Tue, 10 Aug 2021 12:55:04 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Chegaram a Buenos Aires de barco https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/06/11/escravos-tambem-chegaram-de-barco-a-buenos-aires/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/06/11/escravos-tambem-chegaram-de-barco-a-buenos-aires/#respond Fri, 11 Jun 2021 12:45:23 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/blognegreirobuenosaires-300x213.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=628 A escravidão é um fato da colonização das Américas. Foi predominantemente ameríndia nas regiões mineradoras sob jugo espanhol –e africana nos latifúndios monocultores de cana, algodão, café e tabaco. Houve um tempo, porém, em que a procura por escravizados africanos vinha do altiplano andino e era suprida, à base de contrabando, por mercadores portugueses via porto de Buenos Aires.

No clássico “O Comércio Português no Rio da Prata” (1944), Alice Canabrava documenta essa intensa movimentação entre 1580 e 1640, quando as coroas ibéricas estavam unificadas. A pesquisadora, pioneira da história econômica na USP, mostra como a ação de mercadores, elites locais e burocratas corruptos abriu uma rota clandestina de abastecimento que atingia regiões ricas da mineração, como Potosí.

O império espanhol definira o istmo das Américas como portal exclusivo do comércio ultramarino, mas Buenos Aires, mais próxima das minas do Alto Peru, começou a solapar essa regra entre o fim do século 16 e início do 17, integrando o Brasil e outras possessões portuguesas nessa via de contrabando que fez fortunas. Entravam escravizados africanos, víveres e manufaturas. Saíam ouro e prata.

Apenas um traficante introduziu em Buenos Aires 1.200 escravizados oriundos da África. Barcos negreiros vinham de Angola tendo o Brasil, onde se pagava menos imposto, como destino registrado, mas aportavam de fato no estuário do rio da Prata. Em 1623 o padre Diego de Torres relatava a um colega que entravam 1.500 escravos a cada ano por Buenos Aires. Outro clérigo, Pedro de Espinoza, testemunha que negros trazidos de Angola passavam em grupos de mais de cem por Córdoba, já no interior, a caminho do altiplano.

Comprados a menos de 150 pesos no porto, eram vendidos a mais de 400 conforme avançavam rumo às zonas mineradoras. “No rio da Prata, tal foi a atração exercida pelo comércio de escravos que os governadores solicitavam ao rei seus salários em licenças de escravos; os juízes que funcionavam nos arremates de escravos preferiam receber em escravos negros o terço que lhes cabia”, escreveu Alice.

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As vantagens das múltiplas hipóteses na história https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/02/28/as-vantagens-das-multiplas-hipoteses-na-historia/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/02/28/as-vantagens-das-multiplas-hipoteses-na-historia/#respond Sun, 28 Feb 2021 13:30:51 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/cellarius_hypothesis_ptolemaica-300x215.png https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=473 A escolha das hipóteses é um passo decisivo em qualquer pesquisa. Hipótese pode ser definida como uma ideia proposta para explicar um certo fenômeno (isto é, um fato ou evento), podendo ser ou não corroborada pelas evidências. Longe de ser uma decisão trivial, a escolha de uma hipótese tem implicações que podem distorcer os resultados da pesquisa de forma irreparável.

Os problemas relacionados à escolha de hipóteses são ainda maiores no caso de uma disciplina como a história econômica, que lida com ações individuais e coletivas, instituições e estruturas, que são de natureza distinta dos fenômenos físicos e naturais. Um dos maiores riscos é que a escolha prévia de uma ou outra hipótese preferencial acabe por determinar os resultados do que está sendo investigado.

Às vezes, as hipóteses são baseadas diretamente em uma teoria geral que fornece os elementos (fatores, variáveis) e as relações causais que vão delimitar os resultados da análise. Nesse caso, outros elementos e relações são excluídos do estudo e a explicação proposta, quando a pesquisa é empírica, resume-se a testar a significância da hipótese escolhida à luz dos dados coletados. Embora seja um exercício válido dentro da teoria adotada, o problema é que nada garante que as variáveis e relações selecionadas sejam realmente as mais relevantes para explicar um determinado problema, de maneira que a explicação (hipótese) oferecida pode estar comprometida na sua origem.

Em tese, explicações concorrentes, baseadas em distintas teorias, deveriam ser confrontadas e corroboradas ou não pelas evidências. Mas como as próprias evidências utilizadas dependem do que é considerado relevante pelas teorias, é comum que explicações diferentes convivam em mundos paralelos, sem comunicação entre seus defensores. O maior destaque de uma teoria em relação a outras, nesse caso, pode depender em grande medida de razões institucionais, como por exemplo a influência de centros de pesquisa e universidades na formação de estudantes que irão reproduzir teorias, métodos e explicações mais ou menos em voga.

Quando a pesquisa mais se assemelha à montagem de um quebra-cabeças (faltando a maioria das peças), como no estudo da evolução das espécies ou da história, o papel das ideias preconcebidas (ou teorias) na formulação das hipóteses tende a ser ainda maior, podendo até obscurecer o entendimento da realidade. Não é incomum que as convicções prévias sejam tão grandes que levam a uma escolha seletiva de evidências, transformando, na prática, o que deveria ser uma pesquisa em uma mera busca de confirmação das hipóteses. Em tais casos, as hipóteses tornam-se impossíveis de serem rejeitadas, pois elas já foram previamente definidas como verdadeiras.

É nessa situação que um método alternativo na seleção de hipóteses pode ser mais adequado para alguém que estude algum tema histórico. A estratégia consiste na escolha deliberada de múltiplas hipóteses que deem explicações possíveis, distintas e concorrentes para um mesmo fenômeno. Esse é o tema de um artigo de 2016 na Nature, com o título “Research protocols: A forest of hypotheses”. Na verdade, o método faz parte de práticas antigas de pesquisa em diferentes áreas, mas que continuam pouco conhecidas ou aceitas. Apesar do artigo da Nature tratar da pesquisa nas ciências naturais, as questões também são comuns na história e em outras disciplinas das ciências humanas.

Em vez de apegar-se a uma explicação única, que corre o risco de tornar-se uma busca disfarçada de confirmação, o uso de múltiplas hipóteses requer uma atitude diferente: admite-se a presença de possíveis vieses e tenta-se controlá-los considerando explicações alternativas do problema estudado. Comparando essas hipóteses distintas com as evidências, pode-se ter um guia mais fiel para julgar se as explicações são plausíveis e consistentes. Ao mesmo tempo, a pessoa vê-se forçada a questionar suas convicções prévias e avaliar o problema de forma mais distanciada. Essa atitude pode ajudar, inclusive, a encontrar novas evidências que são excluídas quando se escolhe antecipadamente uma causa única.

Seria ingênuo imaginar que simplesmente formular múltiplas hipóteses seja capaz de eliminar, por si só, os problemas típicos de uma pesquisa notados antes. Por exemplo, a estratégia requer um grau de distanciamento em relação a todas as hipóteses escolhidas que pode ser difícil de ser obtido na prática. Não bastaria adicionar explicações ao lado da preferida para depois descartá-las ou desmoralizá-las.

Da mesma forma, nada garante que as múltiplas hipóteses selecionadas incluam sempre as que sejam, de fato, as mais relevantes para explicar um certo fenômeno. Pensar o contrário seria imaginar que alguém possa ser onisciente. Mas, pelo menos, o hábito de reconhecer as possíveis distorções do julgamento individual já é um grande passo. Considerar hipóteses concorrentes e tentar contrastá-las de forma equilibrada com as evidências são um ponto de partida mais honesto e produtivo para tentar entender a realidade, inclusive quando se busca compreender melhor o passado.

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A commodity certa no momento errado: reflexões sobre a manteiga de tartaruga https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/02/26/a-commodity-certa-no-momento-errado-reflexoes-sobre-a-manteiga-de-tartaruga/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/02/26/a-commodity-certa-no-momento-errado-reflexoes-sobre-a-manteiga-de-tartaruga/#respond Fri, 26 Feb 2021 14:20:18 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/Captura-de-Tela-2021-02-26-às-01.19.46-300x215.png https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=477 Em termos didáticos, a história econômica brasileira até o início do século 20 é comumente fragmentada em grandes ciclos, ou ondas, que têm em uma commodity específica seu alicerce. Seguindo a economia extrativista que marca os primeiros anos da colônia, surgem os ciclos do açúcar, do ouro, do algodão, do café, da borracha. Tal generalização, como a grande maioria das generalizações, esconde nuances, contradições e uma gama de outras atividades que em contextos locais foram igualmente vitais. Caso da manteiga de tartaruga, quiçá a mais inusitada commodity amazonense.

Apesar de ser classificada pelo historiador Caio Prado Júnior no clássico Formação do Brasil Contemporâneo (Companhia das Letras) como “gênero de grande comércio” do vale do Amazonas durante o período colonial, a pobre manteiga de tartaruga é, quando muito, nota de rodapé de livros sobre a região. Na falta de documentos e estatísticas oficiais, reconstruir a história da iguaria depende de observações coletadas por viajantes e naturalistas europeus que passaram pelo vale, sobretudo durante o século 19. Ao invés de narrativas complexas, que levam em consideração o ponto de vista das comunidades e suas nuances, nos restam fragmentos por vezes desencontrados de biólogos alemães sucumbindo ao calor dos trópicos.

A manteiga de tartaruga era um óleo, ou gordura, utilizado tanto na iluminação quanto na alimentação. Se levarmos em consideração a opinião dos colegas naturalistas, o gosto era um tanto quanto questionável. É possível, no entanto, que tendo acesso aos bastidores da produção eles foram incapazes de dissociar o processo do produto final. Difícil julgar…

Gravura retratando produção da manteiga de tartaruga, publicado em “Atlas zur Reise in Brasilien” de Karl Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptist von Spix (Acervo Biblioteca Nacional)
Gravura retratando produção da manteiga de tartaruga, publicado em “Atlas zur Reise in Brasilien” de Karl Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptist von Spix (Acervo Biblioteca Nacional)

A despeito do nome, a manteiga não era produzida fazendo uso das tartarugas em si, mas sim de seus ovos. Durante o período de desova, membros das comunidades ribeirinhas se deslocavam em direção ao rio Solimões, construindo abrigos temporários nas margens frequentemente utilizadas pelas tartarugas. Lá, de acordo com o número de indivíduos em cada família, pagavam tributos aos fiscais da coroa e esperavam a chegada das convidadas de honra. Após o retorno dos animais ao rio, o trabalho enfim começava.

Os ovos eram desenterrados e depositados em pilhas que, segundo relatos, chegavam a alcançar um metro e meio de altura. Apenas quando toda a área fosse devidamente escavada que a produção tinha início. Os ovos eram transportados para canoas, quebrados e batidos com água até a obtenção de uma pasta gelatinosa. Após horas de descanso sob o sol, a densidade da gordura, inferior à da água, fazia com que o óleo chegasse à superfície da canoa. Este óleo era então coletado em caldeirões de cobre, filtrado e cozido até obtenção do aspecto desejado. Todo o processo, da coleta ao envasamento em potes de barro, não passava de quatro dias.

A estimativa de um dos nossos exploradores alemães é que cada tartaruga desovasse por volta de cem ovos, e que pra produzir um pote de manteiga era necessária a postura de trinta a quarenta tartarugas. Em um ano, segundo ele, eram enviados de 4.000 a 6.000 potes de manteiga para o Pará, chegando a vultosa conta de no mínimo 12 milhões de ovos usados anualmente na produção da manteiga. Estatísticas do ano de 1819, no entanto, indicam que foram exportados para o porto de Belém da capitania de São José do Rio Preto –atual Amazonas e Roraima– 8.034 potes, o que faz a conta ultrapassar 24 milhões de ovos. Não é de se surpreender que já no ano de 1860 a produção tenha caído para pouco mais de mil potes.

Coincidentemente, enquanto as consequências da prática predatória faziam desaparecer do Amazonas as tartarugas, seus ovos, e a manteiga, a commodity foi descoberta pela indústria cosmética. No início do século 20, devido a suas propriedades hidratantes e adstringentes, a manteiga, então produzida no Caribe, passou a ser utilizada em cosméticos que prometiam aliviar linhas de expressão. Tivéssemos cuidado das tartarugas ou investido em ciência, quem sabe nossa lista não incluísse hoje o ‘ciclo da manteiga de tartaruga’.

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Trabalho qualificado também marcou escravidão no Brasil https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/02/11/efeitos-da-escravidao-brasileira/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/02/11/efeitos-da-escravidao-brasileira/#respond Thu, 11 Feb 2021 13:00:58 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/escravos_máquinas_1-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=461 O estudo dos efeitos do sistema escravista sobre africanos e descendentes mantidos sob a opressão do cativeiro faz parte de uma tradição bem estabelecida no Brasil. Curiosamente, a tendência da literatura foi enfatizar mais aspectos psicológicos e morais do que a realidade vivida pelos escravizados.

Os poucos autores do século 19 que atentaram para questões como saúde, alimentação, integridade física, qualificações ou mortalidade elevada dos escravos geralmente o fizeram em obras destinadas a orientar os proprietários sobre a produção e o trabalho nas fazendas, como por exemplo Carlos Augusto Taunay, em Manual do Agricultor Brazileiro (2a edição, 1839), Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, em Memoria sobre a Fundação e Costeio de uma Fazenda na Provincia do Rio de Janeiro (3a edição, 1878; 1a edição em 1847) e Antonio Caetano da Fonseca, no seu Manual do Agricultor dos Generos Alimenticios (1863).

Mais comuns entre os autores foram opiniões sobre a psicologia, a moral e as atitudes dos escravos em relação à família e a outros aspectos da vida social e econômica. Essa tendência continuou nos estudos das ciências sociais no século 20.

A ausência de dados sobre a realidade nas fazendas não impediu que vários desses autores, antigos e mais recentes, especulassem sobre as capacidades e atitudes dos escravos em relação ao trabalho, seja durante a escravidão ou após a abolição em 1888. Mesmo quando existiam informações mais detalhadas, como as do censo demográfico de 1872 ou de testemunhos valiosos de viajantes contemporâneos, o habitual foi que ideias arraigadas prevalecessem ou pelo menos diminuíssem a disposição de buscar evidências que conflitassem com o senso comum.

Um exemplo é Perdigão Malheiro, que em sua obra A Escravidão no Brasil. Ensaio Historico-Juridico-Social, publicada em 1866 e 1867 (3 volumes), analisou em profundidade as ideologias, as leis e o sistema de exploração do trabalho de escravos no Brasil em comparação com outras regiões das Américas. O autor não demonstrou dúvida a certa altura de seu livro em considerar o escravizado como um indivíduo “tão inteligente como qualquer outro; dotado de qualidades estimáveis, coragem, paciência, resignação, sobriedade; capaz de todo aperfeiçoamento intelectual e moral, próprios da natureza humana.”

No mesmo livro, porém, ao refletir sobre a proposta de abolição da instituição escravista que ele defendia em tese como uma necessidade vital, Perdigão Malheiro alegou que o fim imediato do sistema seria “absolutamente inadmissível na atualidade”. Além da “desorganização do trabalho e da produção”, da ameaça à “riqueza pública e privada”, da “desordem nas famílias” e do ataque “à ordem pública”, o autor dizia que a abolição imediata seria danosa aos próprios escravos. A capacidade de “aperfeiçoamento intelectual e moral” antes citada foi esquecida e Perdigão Malheiro só enxergou a “vagabundagem, os vícios, o crime, a prisão, a devassidão, a miséria, eis a sorte que naturalmente… esperaria” os escravos se alcançassem a liberdade naquele momento.

A visão negativa das habilidades e capacidades dos escravizados foi compartilhada e difundiu-se no século 20 mesmo entre as ciências sociais. Para Florestan Fernandes, em A Integracão do Negro na Sociedade de Classes (1964), ex-escravos após a abolição teriam se autoexcluído do mercado de trabalho regular como uma expressão de liberdade e dignidade, atitude que sob as novas condições de um mercado competitivo conduziu “seus agentes humanos pelo plano inclinado da miséria, da corrupção e do desalento coletivo”.

Sobre as habilidades de trabalho dos ex-escravos e seus descendentes, Florestan Fernandes recorreu a algumas entrevistas para concluir que “eram raros os negros que tinham profissão, como pedreiro, carpinteiro, barbeiro, alfaiate, sapateiro. Eram profissões difíceis e os negrinhos aprendizes tinham dificuldade em conseguir colocação”.

Celso Furtado foi outro autor clássico que adotou uma visão semelhante, em sua Formação Econômica do Brasil (1959): “Cabe tão somente lembrar que o reduzido desenvolvimento mental da população submetida à escravidão provocará a segregação parcial desta após a abolição”, agravada pela sua “forte preferência pelo ócio”.

As evidências históricas, no entanto, dão pouco crédito às opiniões negativas desses autores. Historiadores como Manolo Florentino & José Roberto Góes e Carlos Lima, utilizando inventários post-mortem e outras fontes, já demonstraram há tempos que escravos exerciam profissões qualificadas em número expressivo em áreas rurais e urbanas.

Outras fontes até mais acessíveis do que inventários trazem evidências ainda mais claras. O recenseamento demográfico de 1872, o primeiro de âmbito nacional do Brasil independente, é um exemplo. Além de conter informações como idade, cor, religião e estado civil da população de comarcas e províncias de todo país, o censo de 1872 registrou as ocupações de livres e escravos em mais de 20 categorias de trabalho, de empregados públicos e trabalhadores agrícolas a operários e serviços domésticos.

Uma das categorias da classificação ocupacional do censo de 1872 reuniu o trabalho manual mais qualificado e valorizado no século 19: o dos “operários”, parte das chamadas “profissões manuais ou mecânicas” do recenseamento. Essa categoria abrangia o trabalho geralmente de natureza artesanal, que exigia longo período de aprendizado, destreza e habilidade. Ocupações como as de carpinteiro, ferreiro, alfaiate, sapateiro e mecânico recebiam, portanto, maior remuneração no mercado de trabalho livre e valorizavam os escravos que as executavam.

A título de exemplo, entre os maiores de 10 anos de ambos os sexos, a província de São Paulo possuía 485.632 e 127.467 trabalhadores livres e escravos, respectivamente, em todos seus municípios em 1872. Desses totais, 4,6% eram trabalhadores artesãos livres e 4,3% eram artesãos escravos. Isto é, uma proporção praticamente idêntica de livres e escravos exercia ocupações qualificadas, que exigiam habilidades especiais, experiência e autonomia na atividade do trabalho.

A capacidade intelectual e de aprendizado dos escravos foi testada no ambiente mais hostil e violento do trabalho sob cativeiro, como de fato havia sugerido Perdigão Malheiro em 1867. Se após a Abolição, ex-escravos e descendentes enfrentaram obstáculos e desigualdade, como evidentemente ocorreu e com consequências visíveis até hoje, as causas não devem ser atribuídas às suas atitudes ou características individuais.

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Uma pequena história da visualização de dados (I) https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/01/28/uma-pequena-historia-da-visualizacao-de-dados-i/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/01/28/uma-pequena-historia-da-visualizacao-de-dados-i/#respond Thu, 28 Jan 2021 16:25:55 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/Minard-carte-viande-1858-1-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=128 A atual pandemia acelerou a mobilização de gráficos e infográficos como instrumentos essenciais para construção do debate público. Mas qual é a história por trás de alguns dos gráficos mais conhecidos, os gráficos de barras e de pizza?

Os gráficos de pizza e de barras foram produto do mesmo indivíduo, o escocês William Playfair (1759-1823), um dos pioneiros na história da visualização de dados. Playfair foi o primeiro a produzir e publicar, no seu “The Commercial and Political Atlas” em 1786, um gráfico de barras na sua versão moderna.

O gráfico de barras foi a solução de Playfair à falta dos dados necessários para construir um gráfico de série temporal dos valores de exportação e importação entre a Escócia e seus parceiros comerciais, gráfico este que seria então representado visualmente por uma linha. No gráfico em questão, que pode ser observado abaixo, os valores totais do comércio internacional da Escócia estão representados na parte superior ao longo do eixo x. Já a lista de países e os valores de exportação e importação correspondentes a cada país estão representados ao longo do eixo y, o primeiro no canto direito e o segundo no canto esquerdo. A cada país corresponde duas barras inseridas lado a lado, uma para exportação e outra para importação.

William Playfair, “Exportação e importação da Escócia para e de diferentes partes para [o período de] um ano do Natal de 1870 ao Natal de 1871”, The Commercial and Political Atlas, 1786, 1801 (Terceira Edição). O primeiro gráfico de barras apareceu na primeira edição de 1786. Wikimedia Commons.

Já o gráfico de pizza apareceu em 1801 no seu livro “Statistical Breviary”, quinze anos após a publicação do gráfico de barras. No “Gráfico representando a extensão, população e receita das principais nações na Europa”, que pode ser visualizado abaixo, Playfair introduziu um número ainda maior de informações complexas que no seu primeiro gráfico de barras. A área dos círculos, por exemplo, representava a extensão territorial dos Estados incluídos no gráfico, facilitando a comparação entre as unidades. As linhas que partiam dos círculos, por sua vez, representavam à esquerda população e à direita renda. Finalmente, os círculos são coloridos de acordo com sua localização em termos do continente no qual os Estados eram localizados. E é aqui que o gráfico de pizza surgiu–para resolver o caso do Império Otomano, um Estado com territórios em três continentes. Por isso, o círculo correspondente à Turquia é dividido em três setores, cada uma representando proporcionalmente sua área em cada continente.

Esse teria sido também o primeiro gráfico a utilizar um sistema de codificação de cores, no qual Estados são associados a características específicas. William Playfair, “Gráfico representando a extensão, população e receita das principais nações na Europa”. Statistical Breviary, 1801. Wikipedia Commons. Uma imagem com maior resolução pode ser acessada na mostra virtual Data Visualization and the Modern Imagination.

Para compreender a importância de Playfair na história da visualização de dados é necessário situá-lo em relação aos seus contemporâneos. Ao contrário de intelectuais e funcionários de governos no continente europeu e na Inglaterra, Playfair não acreditava que o uso de tabelas numéricas descritivas era a forma primordial de apresentação e análise de dados. Convencido por experimentos empíricos realizados durante a sua juventude de que todo número podia ser expresso como uma linha, Playfair também foi o criador do primeiro gráfico de linha baseado em uma série temporal.

William Playfair, “Exportação e importação [da Inglaterra] para e de Dinamarca e Noruega de 1700 a 1780”, The Commercial and Political Atlas, 1786, 1801 (Terceira Edição). O primeiro gráfico de barras apareceu na primeira edição de 1786. Wikimedia Commons.
Playfair julgava que o uso de técnicas de representação visual (um campo ainda muito incipiente à época) era um meio superior de apresentar dados e construir argumentos. Isso porque, para ele, gráficos informavam em minutos o que tabelas e figuras levavam dias para comunicar à sua audiência. Uma testemunha da emergência da sociedade industrial moderna, Playfair defendia que “à medida que o conhecimento da humanidade cresce, e transações multiplicam, se torna mais e mais desejável abreviarfacilitar as formas de transmitir informação de uma pessoa para a outra, e de um indivíduo para muitos.” A representação de números desempenharia essa dupla função.

Uma vez que muitas dessas técnicas eram ainda inexistentes, contudo, Playfair foi um dos responsáveis por criar e popularizar alguns instrumentos de visualização de dados (o que ele chamava de lineal arithmetic, ou aritmética linear) que hoje tomamos como parte integral do nosso cotidiano.

O pontapé inicial dado por Playfair foi aproveitado por outros intelectuais, engenheiros (como o francês Charles Joseph Minard, cujo mapa temático abre esse texto e inclui gráficos de pizza), burocratas e figuras públicas durante o século XIX — considerado por alguns estudiosos como a era dourada da produção de gráficos e infográficos. Florence Nightingale, uma estatística e enfermeira britânica que participou da guerra da Criméia (1853-1856), teria também criado diagramas inovadores sobre as causas da morte do exército britânico na guerra justamente para mobilizar a elite política à época para criar melhores condições sanitárias nos hospitais de campanha. Os diagramas de Nightingale demonstravam que a maior causa de mortes durante a guerra não havia sido o conflito em si, mas as doenças geradas pelas condições insalumbres nas quais soldados viviam e a falta de cuidados médicos adequados. Nightingale, como Playfair, também acreditava que uma imagem valia mais que mil palavras–ou, nesse caso, números–como instrumento no debate público.

Contudo, o uso de gráficos e diagramas só foi de fato popularizado ao longo do final do século 19 e início do século 20 com a publicação de manuais na Europa e nos Estados Unidos que ensinavam as técnicas necessárias para produzi-los e com o maior uso desses instrumentos em campanhas de natureza públicas e na imprensa. Lentamente, burocratas também recorreram a esses instrumentos na condução da máquina do Estado.

Rapidamente, gráficos, diagramas, mapas temáticos e infográficos começaram a ser mobilizados para reforçar argumentos de cunho social e econômico. O governo chinês, por exemplo, fez uso desses instrumentos para representar o avanço industrial na área de Xangai em 1933 e 1934 e promover um argumento de prosperidade emergente. Na imagem abaixo, compartilhada pelo historiador Ghassan Moazzin no Twitter, gráficos de barras e de pizza apresentam o número de trabalhadores em fábricas em Xangai nesses dois anos. Enquanto o gráfico de barras apresenta a distribuição de trabalhadores por setor, o gráfico de pizza divide a população operária entre crianças, homens, mulheres e pessoas de gênero desconhecidos. Os dados apontavam ainda para o boom comercial, financeiro e industrial pelo qual a região passaria na década de 1930.

Hoje gráficos de barra e de pizza fazem parte de um grande repertório de instrumentos de visualização de dados que informam a maneira como interpretamos o mundo. Para destacar sua importância, a revista inglesa The Economist montou uma retrospectiva dos seus melhores gráficos de 2020, enquanto o designer de visualização de dados e pesquisador do Laboratório de estudo e pesquisa em Design da Informação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Igor Falconieri publicou um fio sobre algumas das visualizações de dados mais impactantes de 2020 segundo sua perspectiva. Vale a pena dar uma conferida.

Para aqueles que gostariam de ler mais sobre a história da visualização de dados, recomendo três livros: The Visual Display of Quantitative Information, de Edward Tufte, um clássico publicado agora na sua segunda edição; The Minard System: The Complete Statistical Graphics of Charles-Joseph Minard, por Sandra Rendgen, e History of Information Graphics, por Sandra Rendgen e Julius Wiedemann (já recomendado em outro post). Em junho de 2021, Michael Friendly (autor de vários artigos sobre o tema) e Howard Wainer publicam novo volume sobre o assunto, A History of Data Visualization and Graphic Communication.

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Café impulsionou indústria de máquinas já no século 19 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/01/24/cafe-impulsionou-industria-de-maquinas-ja-no-seculo-19/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/01/24/cafe-impulsionou-industria-de-maquinas-ja-no-seculo-19/#respond Sun, 24 Jan 2021 13:00:37 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/mac_hardy_2-300x215.png https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=376 Definir indústria e agricultura como setores econômicos separados tem sua utilidade enquanto classificação formal e para fins estatísticos. Entretanto, essa divisão pouco ajuda a entender ou até obscurece o que aconteceu nas origens da industrialização de vários países, entre eles o Brasil. Pode ser surpreendente para alguém descobrir, por exemplo, que mesmo atividades industriais sofisticadas tinham relação estreita com a produção agrícola. Ou então que essas atividades industriais brotaram em meio à expansão cafeeira do século 19 em regiões como as do interior de São Paulo. Warren Dean mostrou como essas relações se desenvolveram em um livro que muitas vezes é esquecido, publicado no distante ano de 1969.

As poucas estatísticas existentes no século 19 dificultam saber o que estava ocorrendo além da superfície das exportações e da política econômica, mas há formas alternativas para reconstituir essa história. Uma delas é por meio da vida de indivíduos e empresas, como a Companhia Mac Hardy.

Guilherme Mac Hardy foi um mecânico escocês que chegou ao Brasil em 1872 para trabalhar na Milford & Lidgerwood, que se instalou em Campinas em 1864 como casa de importação, realizando reparos, montando e adaptando em suas oficinas as máquinas agrícolas vendidas às fazendas da região. Mac Hardy logo saiu da Lidgerwood e, em 1875, fundou sua própria empresa, a Companhia Mac Hardy, começando a importar mas também a produzir máquinas de beneficiamento de café, ferramentas e utensílios de ferro, chegando anos mais tarde a motores e caldeiras.

Em 1877, a Mac Hardy já estava sendo acusada em anúncios nos jornais por Guilherme P. Ralston & Cia, representante e agente importador das máquinas Lidgerwood, de violar direitos de patente e produzir equipamentos que eram “apenas um regresso aos primeiros modelos introduzidos pelo Sr. Lidgerwood há 14 anos e em todo caso fabricado de materiais muito inferiores.” O importador anunciava aos fazendeiros a instauração de um processo judicial contra Mac Hardy e, ao mesmo tempo, a oferta de um desconto de 20% em relação aos preços das máquinas agrícolas do concorrente.

A Companhia Mac Hardy expandiu-se e abriu seções de fundição, mecânica e carpintaria, empregando nada menos do que 300 operários em 1901. Visitantes estrangeiros e estudiosos que conheceram as fazendas de café da época frequentemente notaram a presença das máquinas de beneficiamento da Mac Hardy e de outras empresas como a própria Lidgerwood, a Engelberg de Piracicaba e a Arens, então sediada em Campinas.

C. F. Van Delden Laèrne, um observador atento e meticuloso enviado ao Brasil pelo governo holandês, encontrou máquinas de beneficiamento de café na maioria das cerca de 75 fazendas que visitou em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo entre 1883 e 1884. O engenheiro Francisco Ferreira Ramos, em seu livro Industries and Electricity in the State of São Paulo (1904), chegou a dizer que o número de máquinas para despolpar café nas fazendas de São Paulo atingia a casa de milhares.

Mac Hardy, Lidgerwood, Arens e Engelberg são apenas algumas das companhias que produziam máquinas no interior de São Paulo. Em 1873, já havia pelo menos quinze fábricas e oficinas que produziam máquinas e equipamentos diversos no estado de São Paulo, segundo o estudo feito por Michel Marson. Em 1891, esse número cresceu para vinte e três, aumentando também o porte e a especialização das empresas, inclusive dando os primeiros passos para atender parte da demanda de equipamentos do próprio setor industrial. A linha de produção de máquinas era variada. Só para o café, havia despolpadores, lavadores, secadores, limpadores, descascadores, ventiladores, separadores, brunidores, catadores e ensacadores que eram empregados em diferentes fases do beneficiamento do produto.

Além do número de produtores e do quanto produziam, outras informações dessas empresas são raras ou desconhecidas até agora. Quem foram, por exemplo, os mecânicos, operários e aprendizes, imigrantes e brasileiros, que tocaram esses empreendimentos que requeriam sofisticado conhecimento técnico na época? Apesar das dificuldades, vários indícios podem ser encontrados em lugares insólitos, como em anúncios de jornais, inventários post-mortem e registros de patentes, como fez Renata Cipolli D’Arbo em sua pesquisa.

As chamadas “patentes de invenção” são uma sinal de que as empresas não se limitaram a reproduzir projetos prontos do exterior. Pelo contrário, elas buscaram realizar adaptações e inovações incrementais nos seus produtos para consolidar e ocupar novos mercados. Entre 1883 e 1900, foram registradas 237 patentes de máquinas de beneficiamento de café no Brasil. Dessas, a Engelberg de Piracicaba, por exemplo, foi responsável por nove patentes de descascadores, ventiladores e catadores, para café, arroz e outros grãos. A Mac Hardy registrou oito patentes no mesmo período para descascadores, separadores, ventiladores, catadores e brunidores de café e arroz.

A expansão agrícola no século 19 criou oportunidades até mesmo para a produção local de manufaturas sofisticadas tecnologicamente, em uma economia em grande medida dependente do trabalho escravizado de africanos e descendentes. Em novos setores, a competição era acirrada e até litigiosa, como ocorreu na disputa entre Mac Hardy e Lidgerwood em Campinas.

Mas é provável que a própria concorrência acirrada entre os produtores de máquinas tenha sido um dos motivos que fizeram com que a Mac Hardy e outras empresas inovassem e prosperassem. Essas empresas foram bem-sucedidas na concorrência com as importações de máquinas agrícolas sem contar, até onde se sabe, com qualquer proteção tarifária na época. Tal fato parece inusitado hoje, mas pode também ser um exemplo.

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Capital humano na prática e na teoria, ontem e hoje https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/01/08/capital-humano-na-pratica-e-na-teoria-ontem-e-hoje/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/01/08/capital-humano-na-pratica-e-na-teoria-ontem-e-hoje/#respond Fri, 08 Jan 2021 13:00:09 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/Anker_Die_Dorfschule_von_1848_1896-300x215.jpeg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=318 Uma opinião muitas vezes repetida na imprensa e em discussões acadêmicas é que a importância da educação para o desenvolvimento econômico das nações só foi reconhecida recentemente, a partir dos primeiros trabalhos sobre a teoria do capital humano no final dos anos 1950 e início dos 1960. Essa é uma percepção, entretanto, que não combina com o que conhecemos da história das políticas educacionais desde o século 19.

De fato, os trabalhos de Jacob Mincer, “Investment in Human Capital and Personal Income Distribution” (1958), Theodore Schultz, “Investment in Human Capital” (1961) e Gary Becker “Investment in Human Capital: A Theoretical Analysis” (1962), entre outros, inseriram de forma original a educação –ao lado de saúde e habilidades do trabalho (skills) em especial– como parte do conceito de capital humano, produzindo uma grande mudança no pensamento econômico sobre esses temas.

Capital humano seria assim, em uma definição simples, a combinação de educação, condições físicas (nutrição, saúde) e habilidades acumuladas pela força de trabalho. Investimentos privados e públicos nessas dimensões da vida das pessoas elevariam a qualidade do esforço humano e contribuiriam para o aumento da produtividade individual e da sociedade como um todo.

A originalidade desse conceito pode ser de certo modo medida pela resistência que enfrentou desde os anos 1960 e que persiste, embora em menor grau, até hoje. De alguma maneira, foi difícil conciliar a ideia de que algo intangível, como educação e saúde, pudesse ser acumulado por indivíduos e em uma coletividade a ponto de ser relevante para a forma pela qual uma sociedade se desenvolve, institucional e economicamente. Para muitos, a noção de capital como fator físico, palpável (máquina, instalações, dinheiro), ou como relação social (na tradição de Marx), pareceu incompatível com o novo papel que se atribuía a habilidades, educação e saúde.

De qualquer maneira, o que é possível dizer é que o motivo da resistência ao papel da educação na disciplina da economia não se deveu à inexistência de autores que trataram do tema em suas teorias. Adam Smith já havia observado em uma descrição famosa que “A aquisição de […] habilidades […] durante sua educação, estudo, ou aprendizagem, sempre custa uma despesa real, que é um capital fixo e realizado […] em sua pessoa. Essas habilidades [são] parte de sua fortuna [e da] sociedade a que pertence.” (1776) Mesmo assim, ideias econômicas sobre educação continuaram correndo à margem até o final dos anos 1950.

O ponto interessante é que, apesar das resistências e controvérsias no campo da teoria, a tese de que a educação era importante para o desenvolvimento de uma nação foi assimilada em vários países, pelo menos desde o século 19. E essa compreensão traduziu-se em políticas públicas locais e nacionais.

Na verdade, bem antes dessa época, alguns países já haviam criado um sistema de escolas paroquiais com ensino de leitura e escrita para boa parte de sua população, embora seja possível que a motivação tenha sido em grande parte religiosa, um produto da Reforma Protestante do século 16. Esse foi o caso da Prússia, Suíça, Holanda, Escócia e das nações nórdicas, assim como as treze colônias do norte das Américas que formariam os Estados Unidos.

A partir do início do século 19, vários governos nacionais e subnacionais, tendo populações com elevado nível de analfabetismo, elegeram a educação primária pública de massa como uma prioridade de suas políticas nacionais e locais. Os motivos foram variados, como o desejo de difundir sentimento de nacionalidade ou a convicção iluminista de independência do indivíduo como base da organização política e social.

Mas também foi importante o crescente entendimento de que a educação de todos os cidadãos era vital para a prosperidade econômica desses países. A França, por exemplo, percebendo seu relativo atraso educacional, encarregou-se de estudar as instituições de ensino popular dos Estados germânicos, inspirando-se neles para a realização de reformas educacionais na década de 1830 (ver, por exemplo, Ellwood Cubberley, 1920).

Robert Allen, em Global Economic History (2011), resumiu a questão na sua lista das quatro políticas implementadas pela Europa Ocidental e Estados Unidos em seus esforços para alcançar a Grã-Bretanha após a Revolução Industrial. Allen destaca uma diretriz comum em todos esses países voltada ao “estabelecimento da educação em massa para qualificar a força de trabalho” (ao lado de políticas para um mercado nacional unificado, uma tarifa externa protecionista e bancos para estabilizar a moeda e financiar o desenvolvimento industrial).

A teoria do capital humano foi um marco ao trazer educação, habilidades e saúde para o centro da análise econômica. A própria resistência à noção de que esses elementos podem ser relevantes para explicar desenvolvimento econômico é em si um fato de interesse para os especialistas em pensamento econômico.

Mais de cem anos antes, porém, já se reconhecia a relação entre educação popular, direitos civis, bem-estar social e a prosperidade econômica das nações. Essa percepção traduziu-se em políticas públicas direcionadas à educação universal e igualitária, adotadas por diferentes níveis de governos e sob distintos regimes políticos. A questão que parece mais significativa é que alguns países foram bem-sucedidos nesse esforço educacional no próprio século 19, enquanto outros falharam e continuam fracassando em tal objetivo.

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Acesso a documentos digitais revoluciona pesquisa histórica https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/26/acesso-a-documentos-digitais-revoluciona-pesquisa-historica/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/26/acesso-a-documentos-digitais-revoluciona-pesquisa-historica/#respond Sat, 26 Dec 2020 13:00:19 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/photo_2020-12-25_19-38-34-300x213.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=170 Documentos digitalizados têm revolucionado a pesquisa histórica nos últimos anos. Um exemplo já bem conhecido no Brasil é a Hemeroteca Digital, um inestimável serviço da Biblioteca Nacional que traz o acervo de jornais fundamentais para o estudo dos eventos políticos, sociais e econômicos da história brasileira, como o Correio Paulistano e o Jornal do Commercio. Recentemente, o Diário de Pernambuco, considerado o jornal mais antigo (desde 7 de novembro de 1825) em circulação da América Latina, também foi incorporado à Hemeroteca.

Há várias outras iniciativas igualmente importantes. Muitas fontes que eram o sonho de pesquisadores, como por exemplo os Anais da Câmara dos Deputados e do Senado (Império e República), podem ser acessadas agora facilmente em suas edições originais. Nessas publicações da Câmara e do Senado encontram-se todos os personagens, debates, políticas e legislações que passaram por essas casas legislativas desde 1823. São informações e dados que precisam ser consultados em qualquer tentativa de ir além de generalizações superficiais em não poucos temas da história brasileira.

Da mesma forma, as Instruções e Circulares da Sumoc (Superintendência da Moeda e do Crédito), no site do Banco Central, são uma fonte básica para reconstituir a complicada história da principal política econômica (a cambial) no Brasil entre 1945 e 1965. Outra referência valiosa para a análise da economia do período do pós-guerra, e que é curiosamente subutilizada hoje em dia, é a revista Conjuntura Econômica da FGV, uma publicação mensal que é chave para acompanhar a política econômica e os dados da economia brasileira, sobretudo de 1947 à década de 1980. A coleção completa da Conjuntura Econômica está disponível em um site que permite, além do mais, a busca por palavras-chave em várias edições combinadas.

Há ainda preciosidades como as bibliotecas digitais de “Obras Raras” do Senado, da Câmara e do STF, bem como a Coleção Brasiliana da antiga Companhia Editora Nacional, digitalizada pela UFRJ. Outro exemplo é a Biblioteca Básica Brasileira, idealizada por Darcy Ribeiro e que foi abordada neste blog por Hanna Manente. Essas coleções reúnem livros de autores muitas vezes esquecidos, mas que continuam necessários para se investigar temas políticos, econômicos e sociais da colônia, do século XIX e da primeira metade do século XX no Brasil.

Em diversos casos, as obras dessas coleções que começaram a ser organizadas na década de 1930 permanecem entre as principais referências para o estudo da sociedade brasileira. Apenas para citar exemplos relacionados à história econômica, em três assuntos diferentes: João de Azevedo Carneiro Maia, O Municipio. Estudos sobre Administração Local (1883); Augusto Olympio Viveiros de CastroTratado dos Impostos. Estudo Theorico e Pratico (1910) e João Pandiá Calógeras, A Política Monetária do Brasil (1910). A digitalização e o amplo acesso de livros como esses podem ajudar a reduzir a tendência da historiografia recente de negligenciar obras fundamentais pela sua idade.

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Pobreza, Distribuição e Crescimento: Uma História do Nosso Contrato Social https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/20/pobreza-distribuicao-e-crescimento-uma-historia-do-nosso-contrato-social/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/20/pobreza-distribuicao-e-crescimento-uma-historia-do-nosso-contrato-social/#respond Sun, 20 Dec 2020 20:00:23 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/27-0639M-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=115 com Julia Duó

Durante a administração de Antonio Delfim Netto, ministro da Fazenda entre 1967 e 1974, o Brasil passou pelo chamado “milagre econômico”. Nesse período, mesmo com o PIB crescendo em média 10% ao ano, grupos de baixa renda tiveram seus salários reduzidos e viram sua participação na renda nacional diminuir de mais de 1/6 em 1960 para menos de 1/7 em 1970

Embora o milagre econômico tenha gerado crescimento, o aumento da desigualdade brasileira foi um resultado das políticas econômicas implementadas durante o regime militar. Para Delfim Netto, à época, esse não era um problema. Segundo ele teria dito, o bolo precisava crescer antes de ser repartido. O modelo econômico da ditadura colapsou antes de explicar aos brasileiros quando e como o bolo seria repartido. 

A analogia do bolo que deve crescer antes de pensarmos em repartir-lo não foi inventada por Delfim. Na verdade, esse pensamento econômico teve suas origens no período entre a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial. Na década de 1930, houve níveis crescentes de pobreza nas maiores economias do mundo e a saída dada pelos governos à época foi focar esforços no aumento da produtividade econômica. Essa política foi reforçada pelas demandas militares colocadas pela Segunda Guerra Mundial e os níveis de prosperidade alcançados no pós-guerra pareciam comprovar a eficácia deste modelo econômico. No entanto, já no fim da década de 1950, começou a ficar aparente que, apesar de o bolo ter crescido para alguns, muitos permaneciam sem acesso a ele ou mesmo com acesso desigual a suas fatias. Como medir a crescente pobreza e desigualdade que aumentavam paralelamente à prosperidade nas economias desenvolvidas e nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento?

É nesse momento que o Banco Mundial, organização internacional criada em 1944 em Bretton Woods, começa a adquirir proeminência nos debates sobre pobreza e desigualdade e sobre suas formas de mensuração. É nessa época também que se consolida entre economistas a ideia de que o objetivo deveria ser o de medir pobreza absoluta, ao invés de focarmos em desigualdade e pobreza relativa.

Como mostra o historiador Rob Konkel, a rede de especialistas centrada no Banco Mundial julgava que desigualdade e pobreza relativa tinham dois problemas sérios nas décadas de 1950 e 1960. Em primeiro lugar, eram conceitos difíceis de serem medidos (Como comparar desigualdade entre países? Como definir pobreza relativa para possibilitar sua mensuração? Pobreza relativa nos Estados Unidos teria o mesmo significado que na Índia?). Em segundo lugar, a questão da desigualdade podia ser facilmente politizada, um problema crucial no auge da Guerra Fria. Já a pobreza absoluta se provou de mais fácil mensuração e comparação após o estabelecimento de uma linha internacional da pobreza (definida em USD 1 por dia no World Development Report 1990 do próprio Banco Mundial). 

Apesar do ativismo de grupos divergentes, o protagonismo do Banco Mundial nas décadas de 1960, 1970 e 1980 foi essencial para consolidar a pobreza absoluta como medida de pobreza às custas de pobreza relativa e de preocupações com a distribuição de renda. Para os especialistas dessa época, o conceito de pobreza absoluta não apenas parecia mais simples de medir e de abordar como problema de governança global, mas também estava muito mais alinhado ao discurso de aumento de produtividade doméstica como resposta aos anseios por prosperidade generalizada. 

Foi só recentemente que o Banco mudou de opinião e passou a liderar um esforço para incluir desigualdade na agenda econômica internacional. Isso ocorreu quando começou a ficar cada vez mais claro que países que não conseguem conciliar aumento da produtividade com baixos níveis de desigualdade também não conseguem sustentar trajetórias longas de crescimento econômico e tampouco manter-se politicamente estáveis.

Este foi o destino do modelo econômico dos anos do “milagre econômico”, que acabou entrando em colapso e nos legando uma década perdida nos anos 1980. 

Desde então, nossa sociedade fez algum progresso no combate à desigualdade. Na democratização, tentamos conciliar crescimento e redistribuição com um novo contrato social instaurado na década de 1980, no qual a sociedade brasileira aceitava baixos índices de crescimento econômico em troca de mais redistribuição de renda. 

Na verdade, a sociedade brasileira nunca conseguiu construir um arranjo institucional capaz de conciliar crescimento econômico e redução da desigualdade no longo prazo.  Como resultado, hoje vemos nossas taxas de crescimento estagnadas e a pobreza volta a crescer. Nosso desafio na década que está para começar será construir um contrato social que, pela primeira vez em nossa história, consiga conciliar crescimento e distribuição em direção a uma sociedade mais inclusiva. Enquanto isso não acontece, nossa democracia seguirá incompleta.

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Navios retratam a globalização no porto de Santos na véspera do século 20 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/18/navios-retratam-a-globalizacao-no-porto-de-santos-na-vespera-do-seculo-20/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/18/navios-retratam-a-globalizacao-no-porto-de-santos-na-vespera-do-seculo-20/#respond Fri, 18 Dec 2020 13:00:45 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/Benedito_Calixto_-_Porto_de_Santos_1914-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=63 O transporte de mercadorias e passageiros por via marítima é um dos aspectos mais visíveis da expansão econômica mundial durante a chamada primeira globalização. Foi o que aconteceu desde meados do século XIX com o porto de Santos em meio ao crescimento excepcional da exportação de café, que trouxe enorme aumento do comércio de todo tipo de mercadorias e a intensificação das relações com portos de várias partes do mundo e de outras regiões do Brasil. Uma boa ilustração encontra-se na tabela (ver no link a seguir ou no final do post) com o movimento de embarcações em Santos nos anos de 1882-83 (fonte: Relatório do Contador do Tesouro Provincial, anexo da Fala do Presidente da Província de São Paulo em 1884).

Os dados da tabela referem-se às saídas de embarcações, o que implica que uma embarcação pode ter ancorado e partido mais de uma vez do porto de Santos no período. São muitos números, mas não deixa de ser instrutivo fazer algumas relações e perguntas a partir deles, como estas apresentadas a seguir.

– Com destino ao exterior, 95 dos 288 (33%) navios, todos estrangeiros, eram ainda a vela. No caso dos ingleses, 29 de 106 (27%), mais do que os alemães (13 de 90, 14%). Alemanha industrial emergente, mais moderna, explicaria o maior número de vapores? Já os noruegueses, 100% a vela (29), o mesmo para os dos Estados Unidos (com apenas cinco embarcações).

– A totalidade dos navios brasileiros (300) dirigiu-se para portos nacionais, com grande participação de embarcações a vela (125 contra 175 a vapor ou 42%).

– Os navios alemães para o exterior ficaram abaixo dos ingleses no total (90 contra 106), porém o número de vapores (77) foi igual, com os ingleses superando os alemães apenas marginalmente em tonelagem. Dúvidas que surgem: e o domínio inglês do comércio marítimo, não se verificava no tráfego de Santos? Será que o mesmo se observava no porto do Rio, então o maior do país?

– Apenas cinco navios dos Estados Unidos participaram do comércio exterior, e um do comércio interno, ficando atrás do número de embarcações inglesas, alemãs, francesas, norueguesas, italianas, portuguesas, e igual ao das belgas. O tráfego de mercadorias e passageiros com navios da potência emergente era tão diminuto com o que viria ser o centro mundial do café, ao contrário da outra potência emergente, a Alemanha, tão distante das Américas?

– Dos navios estrangeiros, principalmente ingleses (47) e noruegueses (29) embarcavam para portos nacionais. No caso dos noruegueses, todas as embarcações eram a vela (e exatamente 29, o mesmo número de navios para o exterior). Surpreendente a participação dos noruegueses no tráfego de Santos? Por que só embarcações a vela? Daqui em diante, precisamos lembrar então que, nesta época, os noruegueses ficavam só a dever aos ingleses no comércio interno a partir de Santos, em número de embarcações e tonelagem.

– Os portos estrangeiros de destino foram principalmente os europeus, mas Nova York aparece em terceiro lugar com 40 embarcações. Ou seja, apesar da pequena participação de seus navios, o fluxo de comércio e passageiros para os Estados Unidos era substancial.

– Em termos de procedência do exterior, a região do Prata se destaca, com parte expressiva dos navios saindo do sul e parando em Santos antes de seguir viagem –intenso comércio com o Cone Sul, portanto.

– Entre os portos nacionais, o comércio de Santos com o Rio de Janeiro dominava absoluto. Em segundo lugar vinham os portos das províncias do sul, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, que somados chegavam perto do Rio de Janeiro. Também apreciável foi o número de navios deslocando-se de e para Pernambuco (12 e 44, respectivamente), disparado o principal centro do comércio de Santos com a região nordeste.

– O tráfego com os portos de Santa Catarina foi grande: considerando a procedência, Tijucas (16 viagens), Itajahy (14), Santa Catarina (2). Parece que São Francisco é o porto de São Francisco do Sul, que teve 31 viagens desta origem; Cambriu seria a vila de Camboriú (4 viagens) (?). E Barra Velha, será a localidade ao norte de Florianópolis que era centro da pesca de baleia? Se estiver correto, são então 68 viagens para Santos.

– Esses números de Santa Catarina superam bastante os dos portos do Paraná (Paranaguá, com 19; Guaratuba, com 12). Algo equivalente ocorre com os portos de destino. Quer dizer que Santa Catarina tinha todo este comércio com Santos? Ou seus portos eram entrepostos de embarcações vindas de outros lugares (caso os dados registrem o último porto antes da chegada a Santos)?  Se os portos forem esses mesmos, o tráfego de Santa Catarina seria até maior do que o dos “Portos do Sul” (60), que parecem um agregado de todos os portos da região sul, sem identificação individual. Não deve ser do Rio Grande do Sul apenas, porque “Rio Grande do Sul” (5 viagens) aparece separado. O agregado também não parece incluir os portos do Prata, pois Montevidéu, por exemplo, aparece na estatística dos portos estrangeiros.

– Na arrecadação de tributos, em termos absolutos, a maior contribuição veio dos navios ingleses, com os alemães em segundo (5,6 contos de réis x 4,1 contos); mas a contribuição relativa, por embarcação/saída, dos navios alemães foi razoavelmente maior (42 mil-réis x 37 mil-réis por embarcação/saída) do que a dos navios ingleses. Por nacionalidade, parece que a maior contribuição relativa foi dos navios franceses (44 mil-réis).

– Por outro lado, a contribuição dos navios brasileiros para as receitas provinciais foi ínfima, em termos absolutos e relativos: apenas 0,9% do total arrecadado com as embarcações, contra 40% dos ingleses, 30% dos alemães, 11% dos franceses e 10% dos noruegueses, por exemplo. Então o “imperialismo” comercial europeu ajudou a financiar os gastos públicos em São Paulo? Os fazendeiros de café, que nada pagavam de imposto sobre suas propriedades ou outros ativos, devem ter agradecido.

Porto de Santos em 1882-83
Tabela – Saída de embarcações do porto de Santos em 1882-83
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