A história é a seguinte https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br Contamos por que todo passado é presente Tue, 10 Aug 2021 12:55:04 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A queda de Tenochtitlán e os pesadelos do México de hoje https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/08/10/a-queda-de-tenochtitlan-e-os-pesadelos-do-mexico-de-hoje/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/08/10/a-queda-de-tenochtitlan-e-os-pesadelos-do-mexico-de-hoje/#respond Tue, 10 Aug 2021 11:17:56 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/Tenochtitlan_y_Golfo_de_Mexico_1524-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=680 No próximo dia 13 de agosto, completam-se 500 anos da queda de Tenochtitlán, a cidade habitada mais suntuosa e sofisticada encontrada pelos espanhóis em sua Conquista da América. Naquele dia, no distante ano de 1521, terminou o longo cerco de 73 dias das tropas espanholas à capital do império asteca.

A data será motivo de lançamentos de livros, conferências e encontros que debaterão as distintas linhas de abordagem historiográfica sobre o passado pré-hispânico, a transformação daquele território em colônia europeia e, mais tarde, no México que conhecemos.

Infelizmente, trata-se também de mais um recurso que está sendo usado pelo presidente populista de esquerda Andrés Manuel López Obrador para reafirmar seu projeto de “quarta transformação”. AMLO (como é chamado) crê que seu sexênio como mandatário não é apenas uma gestão democrática corriqueira, e sim um marco histórico apenas comparado à Independência, a Reforma e a Revolução mexicanas.

Uma das coisas que já vem fazendo, usando essa data, é encaminhar um pedido à Espanha para exigir que esta “peça perdão” pela Conquista. Mais um de seus truques para desviar a atenção dos mexicanos sobre os problemas que sua administração enfrenta no terreno sanitário (já são mais de 244 mil mortos para o coronavírus e apenas 21,3% da população totalmente vacinada) e no econômico (queda do PIB de 9,9%).

Mas os 500 anos da invasão e da conquista de Tenochtitlán também serão tema de uma rica programação por parte da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). O calendário de atividades, exposições e conferências pode ser consultado aqui: https://mexico500.unam.mx/

Entre os destaques está a conferência de um dos principais estudiosos do tema, o antropólogo Eduardo Matos Moctezuma, que há anos vem estudando e organizando as recentes descobertas no Templo Mayor, que foi a construção mais importante dos astecas e que está ao lado do Zócalo e que abriga a sede do Executivo mexicano, o Palácio Nacional.

Moctezuma também falará sobre os novos estudos e interpretações do Calendário Asteca, uma das peças de arqueologia mais importantes daquela época, atualmente abrigado pelo museu de antropologia. 

Mas o que fazia de Tenochtitlán uma cidade tão especial?

“Viajante, você chegou à região mais transparente do ar”, escreveu Alfonso Reyes referindo-se ao vale do México e à Tenochtitlán que os conquistadores encontraram no século 16. Localizada numa ilha rodeada pelo lago Texcoco, unida à terra por um complexo sistema de pontes, a cidade maravilhou os integrantes da tropa de 928 soldados espanhóis liderados por Hernán Cortés.

Tenochtitlán era diferente de tudo o que os espanhóis conheciam. O cronista da conquista Bernal Díaz del Castillo assim a descreveu: “desde que vimos tantas cidades e vilas povoadas na água, e na terra firme outras grandes populações, e aquela calçada tão bem desenhada, ficamos admirados, e dizíamos que aquilo se parecia às coisas de encantamento que se contam nas grandes histórias. As enormes torres e edifícios saíam diretamente da água, e alguns de nossos soldados se perguntavam se não estavam sonhando”. A paisagem se completava com dois enormes vulcões, que pareciam proteger a cidade. Para andar pelos canais e lagoas, havia canoas e outras embarcações.

Em termos de população, Tenochtitlán tinha mais habitantes, então, que Paris, Londres ou Roma.

Um dos debates que seria importante que se desse nestes 500 anos de sua queda é o urbano. Não se trata de querer voltar ao passado, mas de formular soluções para que a cidade volte a ter algo da harmonia que havia naquele tempo entre o centro urbano e a natureza. Caída Tenochtitlán, o que a tornava única começou logo a ser atacado. Seus templos e praças foram praticamente destruídos. E o que era um belo sistema de canais interconectados ficou por baixo de uma megalópole construída sem nenhum planejamento. E que, até hoje, convive com o lago debaixo de si em muitas partes.

A Cidade do México atual, superpovoada de modo caótico, vive apoiada e em constante risco num território lodoso e, ainda por cima, dado a terremotos. As últimas ideias românticas de reviver pelo menos parte de seu passado aquático foram sepultadas quando se construiu o anel rodoviário que a circunda e que leva, de um lado a outro da cidade, um mar de carros claramente desproporcional às necessidades da população.

Também estará em discussão o que de fato ocorreu naquela data. Foi uma invasão, um ataque ou uma conquista baseada em traições e intrigas diplomáticas da época, das quais participaram indígenas de outras tribos e uma personagem tão mítica como a Malinche? A indígena que ajudou os conquistadores e está tão presente na obra do Nobel Octavio Paz, ainda falta ser totalmente decifrada.

Afinal, ela agiu movida por amor, vingança ou orgulho? Há distintas interpretações.

Todas essas questões estarão no ar e o melhor que se pode esperar desta efeméride é que elas sejam discutidas pela população e pelos acadêmicos, com rigor científico. E que não sirvam para alimentar uma narrativa populista. Seria importante que, em vez de iludir a população com a ideia de que lidera um novo ciclo histórico, López Obrador colocasse os pés no chão e se dedicasse apenas a governar seu país.

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O ditador militar admirado pela esquerda peruana https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/06/13/o-ditador-militar-admirado-esquerda-peruana/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/06/13/o-ditador-militar-admirado-esquerda-peruana/#respond Mon, 14 Jun 2021 01:40:18 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/unnamed-3-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=645 Em uma entrevista à TV peruana, perguntaram a Pedro Castillo, virtual presidente eleito do Peru, o que achava de Velasco Alvarado. O esquerdista o elogiou com uma frase curta: “Ele atendeu ao Peru em seu conjunto, e buscou incluir aqueles que estão abaixo”.

Pode parecer estranho aos olhos de quem não conhece a história do Peru o fato de um ditador, que chegou ao poder por meio de um golpe militar, ser um ícone da esquerda. Mas Velasco Alvarado (1968-1975) ocupa esse lugar. E não apenas no Peru. Nos anos 1970, era admirado por vários grupos e partidos políticos esquerdistas na América Latina.

Em outubro de 1968, os militares derrubaram o presidente conservador Fernando Belaúnde Terry. No comando do país, Velasco Alvarado fez o oposto do que outros ditadores dos anos 1960/1970 estavam fazendo no Cone Sul. Governou com o intuito de reduzir as diferenças sociais e acabar com a desigualdade. 

Suas políticas eram nacionalistas e anti-imperialistas, e ele tinha um discurso parecido ao de Juan Domingo Perón (1895-1974) sobre a soberania nacional.

Velasco Alvarado nacionalizou recursos naturais do país, uma de suas principais fontes de riqueza, e realizou uma reforma agrária e um plano de alfabetização nacional. Até 1980, os analfabetos não podiam votar no país. A reforma educacional realizada por Velasco Alvarado deu a um setor da população a possibilidade de participar da política depois da ditadura. Alvarado também modernizou as relações trabalhistas, principalmente na área rural, onde ainda havia uma informalidade enorme, além de situações de trabalho semi-escravo.

Como toda ditadura, obviamente, a de Velasco Alvarado também perseguiu opositores e a liberdade de expressão. E houve um combate muito duro contra guerrilhas que ganharam força nos anos 1960, inspiradas pela Revolução Cubana de 1959. Esses enfrentamentos acabaram radicalizando esses movimentos no campo, favorecendo, por exemplo, o surgimento do Sendero Luminoso, que aterrorizaria o Peru por mais de uma década.

Na política exterior, Velasco Alvarado se afastou dos EUA e se alinhou à então União Soviética, de quem comprou armas. Também aproximou-se da China e de Cuba. Tornou-se amigo, por exemplo, de Salvador Allende, o presidente socialista do Chile derrubado por um golpe militar em 1973.

A ditadura mudou de comando em 1975, passando para o general Francisco Morales Bermúdez. Aí, sim, passou a ser uma ditadura de direita e alinhada com as demais do Cone Sul, com estreitas relações entre Bermúdez e o general Videla, que comandava na ocasião a ditadura argentina.

Em 1977, quando Velasco Alvarado morreu, seu enterro foi acompanhado por uma multidão. Havia sindicatos de trabalhadores urbanos e milhares de camponeses que vieram da região rural despedir-se do líder.

Anos depois, quando Hugo Chávez assumiu o poder, em 1999, tentou exercer um estilo de liderança inspirado em Velasco Alvarado, a quem havia conhecido pessoalmente em 1974 e de quem se declarava um seguidor. Chávez, ainda um jovem cadete, visitou o país para uma celebração militar de comemoração do aniversário de 150 anos da batalha de Chacabuco.

No livro “Hugo Chávez, Un Hombre, Un Pueblo”, a jornalista chilena Marta Harnecker publicou um depoimento de Chávez sobre Velasco Alvarado: “Aos 21 anos, eu estava no último ano da academia militar e já tinha forte impulso por participar da política. Para mim, foi uma experiência emocionante viver a revolução peruana. Conheci pessoalmente a Juan Velasco Alvarado. Uma noite, ele nos recebeu no Palácio e nos deu um livro sobre suas ideias que guardei durante anos”. Tratava-se de uma explicação sobre seu plano de governo, que ele chamava de Plano Inca.

Castillo não é o primeiro aspirante à presidência a evocar Velasco Alvarado. Também o fez Ollanta Humala, que tem um passado ligado ao esquerdismo nacionalista militar, assim como sua família. Por conta desse perfil considerado radical, acabou perdendo a eleição em 2006. Em 2011, porém, ao prometer fazer um governo de centro, deixou as bandeiras velasquistas de lado. Agora, elas aparecem novamente tomadas por Castillo.

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Chegaram a Buenos Aires de barco https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/06/11/escravos-tambem-chegaram-de-barco-a-buenos-aires/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/06/11/escravos-tambem-chegaram-de-barco-a-buenos-aires/#respond Fri, 11 Jun 2021 12:45:23 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/blognegreirobuenosaires-300x213.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=628 A escravidão é um fato da colonização das Américas. Foi predominantemente ameríndia nas regiões mineradoras sob jugo espanhol –e africana nos latifúndios monocultores de cana, algodão, café e tabaco. Houve um tempo, porém, em que a procura por escravizados africanos vinha do altiplano andino e era suprida, à base de contrabando, por mercadores portugueses via porto de Buenos Aires.

No clássico “O Comércio Português no Rio da Prata” (1944), Alice Canabrava documenta essa intensa movimentação entre 1580 e 1640, quando as coroas ibéricas estavam unificadas. A pesquisadora, pioneira da história econômica na USP, mostra como a ação de mercadores, elites locais e burocratas corruptos abriu uma rota clandestina de abastecimento que atingia regiões ricas da mineração, como Potosí.

O império espanhol definira o istmo das Américas como portal exclusivo do comércio ultramarino, mas Buenos Aires, mais próxima das minas do Alto Peru, começou a solapar essa regra entre o fim do século 16 e início do 17, integrando o Brasil e outras possessões portuguesas nessa via de contrabando que fez fortunas. Entravam escravizados africanos, víveres e manufaturas. Saíam ouro e prata.

Apenas um traficante introduziu em Buenos Aires 1.200 escravizados oriundos da África. Barcos negreiros vinham de Angola tendo o Brasil, onde se pagava menos imposto, como destino registrado, mas aportavam de fato no estuário do rio da Prata. Em 1623 o padre Diego de Torres relatava a um colega que entravam 1.500 escravos a cada ano por Buenos Aires. Outro clérigo, Pedro de Espinoza, testemunha que negros trazidos de Angola passavam em grupos de mais de cem por Córdoba, já no interior, a caminho do altiplano.

Comprados a menos de 150 pesos no porto, eram vendidos a mais de 400 conforme avançavam rumo às zonas mineradoras. “No rio da Prata, tal foi a atração exercida pelo comércio de escravos que os governadores solicitavam ao rei seus salários em licenças de escravos; os juízes que funcionavam nos arremates de escravos preferiam receber em escravos negros o terço que lhes cabia”, escreveu Alice.

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Depoimentos redesenham massacre em El Salvador https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/05/02/depoimentos-redesenham-massacre-em-el-salvador/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/05/02/depoimentos-redesenham-massacre-em-el-salvador/#respond Mon, 03 May 2021 00:04:06 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/el_mozote_justo_despues_de_la_masacre-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=589 Os EUA estão preocupados com El Salvador.

Afinal, a instabilidade econômica e política dessa nação centro-americana, que só cresceu após a guerra civil (1980-1992), gerou uma imigração volumosa de salvadorenhos aos EUA nas últimas décadas. Além disso, deportados especialmente de Los Angeles, nos anos 1990, jovens voltaram a El Salvador sem perspectivas e entraram para as “maras”, gangues criminosas que hoje aterrorizam camponeses salvadorenhos, que, por sua vez, voltam a buscar refúgio no norte.

Trata-se de um ciclo vicioso de tragédias humanas que se repetem. O norte-americano médio pensa que os salvadorenhos buscam entrar nos EUA apenas porque são pobres, mas no fundo, não é só isso. A imigração é um dos efeitos colaterais de uma relação histórica e muito desigual entre EUA e El Salvador. Hoje, o presidente norte-americano, Joe Biden, tem planos de ajudar economicamente os países do chamado Triângulo do Norte (El Salvador, Guatemala e Honduras). Mas não adianta apenas enviar dinheiro, é preciso colaborar em investimentos para criar trabalho, oportunidades e resolver a crise humanitária nesses países. Uma das providências que se deve tomar é ajudar a revelar a verdade sobre o papel dos EUA na criação das “maras” e, antes disso, em sua atuação clandestina durante a guerra civil.

Além de uma dívida com a história e a verdade, trata-se de um modo de gerar empatia entre as duas nações, essencial para tratar a imigração com mais conhecimento e de modo mais humano.

E é por isso que tem sido importante a retomada do julgamento do massacre de El Mozote, desde 2016, quando caiu a lei de anistia local. O caso está agora numa nova fase de audiências e de coleta de depoimentos, em que estão sendo ouvidos peritos, testemunhas e estudiosos do caso. A ideia é adicionar novas evidências à causa. Depois dessa etapa, o julgamento deve passar para a fase em que os 16 oficiais suspeitos de estarem envolvidos no massacre devem ser levados ao banco dos réus.

Na semana passada, a corte ouviu Terry Karl, uma investigadora de crimes de direitos humanos cometidos na guerra civil salvadorenha, pesquisadora da universidade de Stanford, que revisou arquivos militares e realizou centenas de entrevistas com pessoas vinculadas ao caso. Karl levou ao tribunal evidências de algo que era desconhecido, a presença do sargento Allen Bruce Hazelwood em El Mozote. Além disso, também de que mercenários norte-americanos tinham participado de ações na região. O fato de haver norte-americanos diretamente envolvidos na tragédia, algo que a administração de Ronald Reagan (1981-1989) sempre negou, muda a dimensão do conhecimento sobre a interferência dos EUA nos destinos do conflito. E também aumentam suas responsabilidades com relação aos fatos ocorridos.

Com a ajuda dos poucos sobreviventes, o que se sabe sobre El Mozote (vilarejo que fica a 180km da capital do país) é que, em 1981, o Exército de El Salvador teria chegado até lá. Na praça principal, os soldados juntaram a população. Vendaram e executaram os homens. Depois, as mulheres, não sem antes estuprar várias delas.

Por fim, assassinaram as crianças, além do único soldado que havia se negado a atirar contra menores de idade. O total de civis mortos na operação foi de 960 pessoas.

Oficialmente, as forças de segurança afirmaram que o objetivo era buscar guerrilheiros esquerdistas da Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional (FMLN). Depois da matança, os soldados puseram fogo em corpos e casas e deixaram o local, talvez achando que ninguém se daria conta do desaparecimento daquelas pessoas.

Calados pelo governo, os meios de comunicação locais quase não publicaram nada sobre o tema. Dois jornalistas estrangeiros, porém, decidiram visitar o local, porque tinham escutado um rumor sobre o caso, e desvendaram a história. Foram o norte-americano Raymond Bonner, do New York Times, e a mexicana Alma Guillermoprieto, do Washington Post. A partir daí, o caso ganhou projeção internacional e a cobrança por uma solução é uma demanda da população salvadorenha e dos organismos de direitos humanos.

Mesmo assim, o julgamento atual só começou em 2016, quando foi derrogada a lei de anistia, e a Justiça iniciou o julgamento de 16 ex-militares envolvidos.

Num momento em que o país segue vivendo os problemas relacionados a instabilidade econômica e violência, que forçam a imigração, e, além disso, atravessa uma crise política em que o governo de Nayib Bukele avança contra as instituições, elucidar o que ocorreu em El Mozote é essencial.

Uma conclusão sobre o que ocorreu naquele dia e Justiça para as vítimas é uma demonstração de que o país repudia os abusos de direitos humanos. Justamente num momento em que o país volta a ter um líder autoritário, é mais do que necessário mostrar-lhe que certos limites jamais podem ser ultrapassados outra vez. Porque, se isso ocorrer, já não haverá mais impunidade.

 

 

 

 

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Com legado divisivo, estátua de Baquedano é retirada de Santiago https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/03/18/com-legado-divisivo-estatua-de-baquedano-e-retirada-de-santiago/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/03/18/com-legado-divisivo-estatua-de-baquedano-e-retirada-de-santiago/#respond Thu, 18 Mar 2021 13:05:41 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/553e1db46481d8c7dda71cc8f17581c4-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=514 Por mais de um ano, a estátua do general Manuel Baquedano (1823-1897), em Santiago, foi pichada, vendada, escalada e pintada de diversas cores. Houve, também, várias tentativas de derrubá-la e até mesmo uma, mais recente, de incendiá-la.

Por fim, o órgão responsável pela preservação do patrimônio no Chile decidiu removê-la, alegando que ela necessitava uma restauração. Tirou-a, então, da praça Itália, também conhecida como praça da Dignidade, o epicentro das manifestações chilenas que tiveram início em 18 de outubro de 2019 e que continuam ocorrendo.

A retirada da estátua na madrugada da última sexta-feira (12) vem causando divisão no Chile. Grupos de direita, liderados pela UDI (União Democrática Independente), afirmam que a retirada é uma “capitulação ante o vandalismo”, como se expressou o partido em um comunicado de repúdio ao governo. Já para muitos dos manifestantes e para a intelectualidade progressista, Baquedano é um símbolo dos avanços do Exército chileno sobre o o povo mapuche, na Patagônia, no século 19. Estes também apontam a estátua de Baquedano como um divisor entre ricos e pobres, uma vez que, ao norte da estátua, estão os bairros de classe alta e média alta de Santiago, enquanto ao sul estão os mais humildes.

Há décadas, a praça é um ponto de encontro comum na capital chilena, usada para manifestações e para celebrações de vitorias esportivas. A presença do general ali, porém, com a fervilhante turbulência política atual, passou a ser incômoda e mesmo uma provocação aos que se sentem indignados com a desigualdade chilena.

O curioso é que, cada ataque para realizar uma pichação ou pendurar coisas em Baquedano, correspondia a uma resposta incrivelmente rápida das autoridades locais para repintá-la de negro e limpá-la. Aconteceu dezenas de vezes. Virou inclusive um desafio. Durante a madrugada ou nas trocas de guarda dos Carabineros, manifestantes tinham tudo preparado para jogar novas tintas em Baquedano. E as autoridades se esforçavam para, cada vez, dar uma resposta mais rápida, repintando a estátua para o dia seguinte. Era uma gincana simbólica que resultava até mesmo divertida de acompanhar. Mas que agora terminou.

Porém, quem foi Baquedano, e por que se transformou em um personagem histórico que divide opiniões?

O general teve atuação nas armas e na política, e chegou a ser presidente interino do país em 1891. Destacou-se atuando na Guerra do Pacífico (1879-1884) e na que é conhecida pelos livros de história locais como “pacificação” da Araucania”. Porém, para muitos historiadores, essa “pacificação” foi como a Campanha do Deserto argentina (1878-1885), que tinha como finalidade, no discurso, levar a “civilização” aos rincões do país. Mas que, na prática, significou a matança de povos indígenas. Não é gratuito, portanto, que tantos manifestantes neste ano e meio de protestos tenham escalado a estátua de Baquedano empunhando a bandeira mapuche. A população de indígenas no Chile hoje é de 12,8% da população, e uma das broncas com relação à Constituição de 1981, vigente até hoje, é o não reconhecimento da população indígena do país. Já o verdadeiro papel ou visão de Baquedano com relação aos povos originários está meio nublada na história. Não é possível afirmar que estivesse diretamente envolvido com as mortes, embora comandasse a campanha que ia por conquista de terras na Araucania, onde estes viviam.

Baquedano por Pedro Subercaseaux Errázuriz (Reprodução)

Agora o debate que se instalou no Chile é se haverá um substituto para a estátua do general, no mesmo lugar. Algo que seria estranho, pois ali há uma estação de metrô e um parque que, ainda, levam seu nome. Ou se o espaço permanecerá vazio até que as coisas se acalmem e Baquedano, montado em seu cavalo Diamante, possam regressar. O mesmo debate também existe com relação a mais de 200 estátuas que foram pintadas ou atacadas em todo o Chile durante as manifestações, e as diversas pixações nos muros de Santiago. Há quem diga que tudo deve ser restaurado, e quem pense que isso seria uma tentativa de apagar a história destes últimos dois anos.

A guerra pelas estátuas vem ocorrendo também na vizinha Argentina. Quando foi presidente, também sob críticas, Cristina Kirchner mandou retirar uma estátua de Cristóvão Colombo dos jardins da Casa Rosada. Colocou ali uma estátua de Juana Azurduy, heroína da independência da Bolívia, presente de Evo Morales. Quando assumiu como seu sucessor, Mauricio Macri tirou Azurduy dali e a levou para outra praça do centro. O lugar, agora, continua vazio. O mesmo debate ocorre em diversas cidades do interior da Argentina que ainda têm estátuas do ex-presidente Roca, um dos responsáveis pela Campanha do Deserto.

Em tempos de turbulência política, como vêm sendo estes últimos na América Latina, o questionamento das estátuas é intenso. Se isso promover uma discussão crítica sobre o passado, será uma experiência válida. Se continuar sendo uma gincana para ver quem as derruba ou as restauram primeiro, parece que se está gastando tempo e dinheiro público à toa.

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O dilema da ‘excepcionalidade’ peruana https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/03/03/o-dilema-da-excepcionalidade-peruana/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/03/03/o-dilema-da-excepcionalidade-peruana/#respond Wed, 03 Mar 2021 11:31:14 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/5f15f44c1e6ab-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=511 A cada nova escolha de um presidente no Peru, a pergunta surge: “por que os mandatários peruanos consomem tão rápido sua popularidade?”. A pergunta é pertinente, basta ver as cifras mais recentes. Alejandro Toledo (2001-2006) tocou fundo, chegando a governar com apenas 8% de aprovação popular. Alan García, que teve dois períodos como presidente (1985-1990 e 2006-2011), conviveu longamente com o patamar em torno dos 15%. Ollanta Humala (2011-2016) terminou sua gestão com 17%.

Importante lembrar que, diferentemente de outros países da região, o Peru é pouco dado a aventuras populistas. É certo que houve o esquerdista Velasco Alvarado (1968-1975). Um dos inspiradores de Hugo Chávez, Alvarado restringiu direitos e perseguiu opositores, mas lançou uma ampla reforma agrária que foi muito popular, além de outros projetos mirando a justiça social. Porém, foi um general que chegou ao poder por meio de um golpe e que implementou um regime militar. 

Outro que tentou uma aventura autocrática foi Alberto Fujimori (1990-2000). Apesar de ter conquistado a admiração de boa parte da sociedade –tanto que o fujimorismo existe até hoje, embora com força residual–, sua gestão não acabou nada bem e está atrás das grades, na prisão de Callao, perto de Lima, cumprindo uma pena de 25 anos por corrupção e abusos de direitos humanos.

Fora esses casos, o país praticamente não se prostrou a louvar nenhum líder carismático ou com um discurso de salvador da pátria. 

Essa “excepcionalidade peruana” volta à tona agora. Não apenas porque temos uma nova eleição no horizonte –em 11 de abril–, mas porque desta vez sequer estamos discutindo um presidente que chega ao fim do período com baixa popularidade, como era o costume. Mas sim que este nem chegou, e o mandato termina com pouco oxigênio e um líder-tampão.

No mandato do período de 2016-2021 houve nada menos que quatro presidentes (e ainda dá tempo para mais um…). O primeiro, Pedro Pablo Kuczynski, eleito pelas urnas, renunciou quando o Congresso levou adiante pela segunda vez uma moção de vacância por conta de seu possível envolvimento com escândalos de corrupção. 

Depois, veio um de seus vices, Martín Vizcarra, que até teve alta popularidade por um momento, mas não conseguiu governabilidade e, sem apoios, também perdeu seu cargo para um Congresso opositor. Um terceiro, Manuel Merino de Lama, teve um mandato ainda mais curto do que esta frase para explicar quem ele foi, pois durou apenas cinco dias. E o atual, Francisco Sagasti, acabou sendo uma grata surpresa entre as opções existentes. Porém, tampouco apresenta uma gestão robusta, ainda mais por ter assumido no meio de uma pandemia que golpeou o país mais do que qualquer outro na América do Sul até agora.

Pode-se pensar que a tal “excepcionalidade peruana” seja algo positivo, pois poupa o país de ter que lidar com caudilhos que insistem em se perpetuar no poder. O outro lado da moeda, porém, é que o atual sistema político, que mistura parlamentarismo e presidencialismo, pode funcionar muito bem nas condições adequadas. Mas quase nada quando as instituições passaram por um longo desgaste durante os anos do fujimorismo, que também fragmentou e debilitou os partidos e quando praticamente todas as agrupações foram corroídas pela corrupção. Tudo isso somado se mostra claro na apatia que mais de 50% dos eleitores mostram diante da eleição que vem por aí. 

Mas, o que explica, historicamente, essa “excepcionalidade” peruana?

A origem remonta aos tempos coloniais. Embora hoje não se pense em Lima como a principal metrópole regional, ela foi o centro do sistema nervoso do domínio espanhol nas Américas. Fundada por Francisco Pizarro em 1535, virou sede das operações do Império na região. No que hoje é o Peru encontrou-se ouro em abundância, e em torno dessa riqueza se construiu uma faustosa cidade, capital do Vice-Reinado do Peru, o mais importante da América do Sul, onde se tomavam decisões para toda a região.

Pizarro havia destronado nada menos que um imperador inca, Atahualpa. Desde então, está introjetada na cultura peruana a rejeição aos líderes que vieram depois de Pizarro, considerados herdeiros dos usurpadores do trono.

Assim como a fundação do Vice-Reinado foi na base da força, derrubá-lo custou muito. As tentativas dos “criollos” independentistas locais foram violentas e começaram muito cedo em comparação com outros países da América do Sul.

Um exemplo disso foi a famosa rebelião de Túpac Amaru 2, em 1780, reprimida de modo brutal pelos espanhóis. Houve, ainda, a rebelião de Tacna, em 1811 e a de Cuzco, em 1814, igualmente massacradas. Para os espanhóis, perder o Vice-Reinado do Peru seria uma derrota imensa, muito mais, por exemplo, do que perder o distante e bem mais pobre, nessa época, Vice-Reinado do Prata. Por conta disso, as tropas realistas o defenderam a ferro e fogo.

A tarefa foi tão difícil que não bastaram as forças locais, foi preciso chamar ajuda estrangeira para alcançar a independência. Essa ajuda veio por meio das colunas lideradas pelos dois mais importantes libertadores da América, o general San Martín, vindo do que hoje é a Argentina, e Simón Bolívar, vindo do que hoje são Colômbia e Venezuela.

Se com algo se acostumaram os peruanos, portanto, foi ao enfrentamento com relação ao poder. E uma rejeição muito grande à tentativa de implementar governos muito centrados na figura de uma só pessoa, assim como cercados de luxos e marcos imponentes, como era o domínio espanhol.

Neste ano em que o Peru, em plena crise institucional, elege um novo presidente e parlamento, comemora-se também seus 200 anos da independência. A libertação do país foi proclamada em 28 de julho de 1821, por San Martín, em cena retratada no quadro que ilustra este post.

Há historiadores que explicam o inconformismo do peruano com a autoridade a partir da cultura nascida com esse trauma que foram os difíceis anos da colonização e as sangrentas batalhas pela independência. Daí teria nascido essa rejeição tão aguçada a qualquer autoridade.

Por conta disso, não teria havido espaço para movimentos de adoração a uma só pessoa, como aconteceu com o peronismo (Argentina) ou o chavismo (Venezuela), ou a um grupo de origem revolucionária, como o PRI (México).

O que o Peru tinha durante todo o século 20, porém, eram partidos com personalidade ideológica clara. E isso dava riqueza aos debates e sustento para o sistema político. Mas o fujimorismo destruiu isso. Ao promover um Estado enxuto, deixou o poder Executivo mais fraco. Um presidente eleito hoje não tem muito poder para grandes reformas, pois a máquina que governa é pequena. O fujimorismo ainda desgastou muito os partidos, por meio do fechamento, ainda que temporário, do Congresso, da perseguição a líderes políticos, e da criação de um aparato para-estatal para reprimir opositores, como o grupo Kolina.

Daí que, nos tempos atuais, tenha sido tão difícil conquistar maiorias parlamentárias. As legendas dos partidos já não significam o que eram no passado. No Ação Popular, provavelmente poucos se lembrem de Belaúnde Terry, promotor de reformas modernizadoras nos anos 1960. Assim como o esquerdista Apra (Aliança Popular Revolucionária), de Víctor Raúl Haya de la Torre. 

Com tamanha falta de compromisso ideológico, a maioria dos políticos se filiam a partidos apenas por conveniência e para defender os interesses de seu grupo social e econômico. Num sistema político que promove a formação de consensos em torno de cada questão em debate, que não haja uma estrutura de pensamento nos partidos leva à fragmentação e à formação de complôs e intrigas. Foi nesse campo minado que tentaram sobreviver os últimos presidentes.

E é esse o terreno minado que enfrentará o próximo…

 

 

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Afinal, quais são as ‘repúblicas das bananas’? https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/01/11/afinal-quais-sao-as-republicas-das-bananas/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/01/11/afinal-quais-sao-as-republicas-das-bananas/#respond Mon, 11 Jan 2021 13:41:48 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/Bananeras-780x514-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=354 Após a invasão do Capitólio norte-americano por apoiadores de Donald Trump, no último dia 6 de janeiro, tem sido comum o comentário: “os EUA agora estão parecendo uma república das bananas”. Ele surgiu na voz de analistas, políticos e até mesmo em respostas da própria gestão Trump. 

O ex-presidente republicano George W. Bush afirmou que “este é o modo como os resultados de uma eleição são disputados numa ‘república bananeira’, não em nossa república democrática”.

O Secretário de Estado, Mike Pompeo, saiu a rebater a crítica, dando sua própria visão do que significa o termo: “Jornalistas e políticos estão comparando o que ocorreu em Washington com o que ocorre numa ‘república das bananas’. Essa comparação mostra um desentendimento entre o que é uma ‘república das bananas’ e o que é a democracia nos EUA. Numa ‘república das bananas’, a violência da multidão determina o exercício do poder”.

Pompeo demonstrou, portanto, que nem ele mesmo sabe o que significa uma “república das bananas”. E que o termo, hoje, se encontra banalizado. É usado por políticos e analistas para referir-se a países instáveis politicamente, em que golpes de Estado, rebeliões populares, assassinatos de presidentes e ditaduras são comuns. Em geral, designam países da América Latina.

A história do termo revela duas coisas: primeiro, se os países chamados de “repúblicas das bananas” são como a descrição acima, é porque os EUA tiveram muito a ver com a instalação dessa instabilidade, e portanto seus políticos não deveriam usar a expressão como algo alheio, que ocorre longe deles e com o qual não têm nada que ver. Em segundo lugar, não é a primeira vez que os EUA também vivem momentos parecidos aos que ocorrem naquilo que chamam “repúblicas das bananas”, como tentativas de assassinatos de presidentes, suspeita de fraudes em eleições, mentalidade caudilhesca de determinados líderes, entre outras coisas.

Mas, afinal, o que é uma “república das bananas”?

O termo foi cunhado por um escritor norte-americano, veja só, William Sydney Porter (que assinava com o pseudônimo de O.Henry), no conto “The Admiral”, que integra o livro “Cabbages And Kings” (1904). Ali, o autor descreve um país ficcional, cujo nome é República da Anchuria. 

O.Henry (1862-1910) contava a história de “uma pequena república bananeira”, onde camponeses eram explorados por uma classe dirigente e o governo era submisso e corrompido por empresas multinacionais instaladas no país.

Anchuria era um retrato ficcionalizado de Honduras, onde O.Henry havia vivido um tempo, refugiando-se após ser acusado de haver desviado dinheiro de um banco em Austin.

Honduras, na época em que O.Henry viveu ali, havia passado por cinco golpes de estado em sua então curta história como país independente da Espanha, em 1821. Outro dos primeiros países a serem chamados de “república das bananas” foi El Salvador, que teve 13 golpes de Estado desde sua independência, em 1840.

Com o tempo, o termo “república das bananas” se ampliou para referir-se a vários países da América Latina e do Caribe. Na região, entre o final do século 19 e o princípio do 20, mais de 20 empresas multinacionais, a maioria norte-americana, se instalaram para cultivar e exportar frutas tropicais. Usavam a mão-de-obra local, muito barata, a quem negavam direitos trabalhistas básicos, corrompiam autoridades locais e nacionais, por meio de favores e dinheiro.

A mais famosa delas foi a United Fruit Company, que acabou vinculando-se a massacres e a golpes de Estado, uma vez que utilizava o apoio dos Exércitos locais para defender seus interesses na região. A fruta mais disputada, no caso, era a banana, cultivada principalmente na América Central e na Colômbia. Portanto, o sistema corrupto e violento das companhias norte-americanas foi um legado dos EUA a esses países da América Latina, e não algo que já era típico destes, que recém saíam de outro sistema de exploração, a colonização pelas metrópoles europeias.

A partir de então, o termo acabou sendo usado para referir-se a países monoprodutores, corruptos, com instituições e governos fracos, e nos quais empresas estrangeiras influenciam nas decisões nacionais.

Companhias como a United Fruit Company trouxeram ares de modernidade a esses países, construindo ferrovias, estradas, e trazendo melhorias aos lugares onde se instalavam. Porém, também exploraram a mão-de-obra barata e corromperam governos.

O mais trágico evento político de que a United Fruit Company participou foi o golpe de Estado na Guatemala, em 1954, retratado recentemente em romance do peruano Mario Vargas Llosa. Ali, a empresa ajudou a CIA na derrubada do então presidente Jacobo Arbenz (1913-1971), que pretendia realizar uma reforma agrária que afetaria os interesses da companhia no país.

Outro episódio sangrento no passado da United Fruit Company foi o massacre de milhares de trabalhadores na Colômbia, em 1928. Na ocasião, o Exército colombiano interveio numa greve de trabalhadores da empresa que pediam melhores salários na região do rio Magdalena. O desenlace foi o assassinato de mais de 5 mil pessoas, embora segundo números oficiais tenham sido “apenas” 100.

Historiadores e escritores retrataram a passagem das empresas norte-americanas na América Latina. Entre as obras literárias de mais destaque está “Cem Anos de Solidão”, que trata diretamente desse massacre.

Ali, o prêmio Nobel Gabriel García Márquez (1927-2014) conta a chegada de um norte-americano em Macondo, “mister Herbert”, que fica encantado com o sabor e a aparência de banana, fruta que via pela primeira vez e observava “com a incrédula atenção de um comprador de diamantes”.

A visita de “mister Herbert” foi seguida da chegada de agrônomos, topógrafos e advogados, que construíram seu próprio bairro em Macondo e passaram a viver e a cultivar bananas na região, usando a mão-de-obra dos habitantes da cidade. Até que os trabalhadores, que morriam por doenças, exaustão e fome, decidiram mobilizar-se, e a repressão foi imediata.

Outros dois prêmios Nobel de literatura abordaram o trauma que foi a passagem das multinacionais bananeiras norte-americanas na América Latina. Um deles foi o guatemalteco Miguel Ángel Asturias (1899-1974), que, em “El Papa Verde” (1954), descreve um poder imperial que se impõe sobre a selva e os homens, manipula políticos e derruba governos, tirando de sua frente tudo o que podia atrapalhar o desenvolvimento de seu projeto bananeiro. Nesta ficção, a United Fruit Company tem o nome fictício de Tropical Bananeira.

Já o chileno Pablo Neruda (1904-1973) escreveu um poema, “La United Fruit Co.”, que em suas estrofes diz: “Quando soou a trombeta,/ estava tudo preparado na terra,/ e Jeová repartiu o mundo/ pela Coca-Cola Inc., Anaconda,/ Ford Motor, e outras entidades:/ A Companhia Fruteira Inc./ reservou o mais suculento,/ a costa central da minha terra,/ a doce cintura da América/ Rebatizou as terras/ como “Repúblicas Bananeiras”/ e sobre os mortos adormecidos,/sobre os heróis inquietos/ que conquistaram a grandeza,/ a liberdade e as bandeiras,/ estabeleceu a ópera bufa”.

Em vez de perpetuar esse termo preconceituoso sobre a América Latina, os EUA e seus políticos deveriam fazer uma autocrítica. Foi dos EUA que saíram as companhias bananeiras a explorar terras e mão-de-obra na América Latina. Os países recém-saídos do processo de independência ainda não tinham instituições fortes, quando se viram diante de um poder que as corrompia no incipiente nascimento de suas democracias. E foi por obra de um escritor norte-americano foragido da polícia que o termo “república das bananas” passou a existir. Ainda, também, é por conta de um olhar pejorativo sobre a América Latina que a expressão persiste, como se, nos EUA, a democracia fosse perfeita. O episódio no Capitólio não é um caso isolado a mostrar que os EUA, segundo essa régua, também sempre foram muito “bananeiros”.

 

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Colômbia tenta trazer à luz a história de sua guerra interna https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/01/04/colombia-tenta-trazer-a-luz-a-historia-de-sua-guerra-interna/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2021/01/04/colombia-tenta-trazer-a-luz-a-historia-de-sua-guerra-interna/#respond Mon, 04 Jan 2021 18:59:15 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/abre-rendicion-nota-300x215.jpg https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=325 O pensador irlandês Edmund Burke (1729-1797) escreveu que “o povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la”. Embora não exista garantia nenhuma de que, de posse de conhecimentos sobre o passado, a humanidade possa voltar a cometer os mesmos (ou piores) erros, é preciso concordar que, pelo menos, a compreensão da história nos ajuda a curar feridas, reconciliar sociedades e nos oferece uma oportunidade de realizar escolhas políticas melhor informadas. 

Por exemplo, será que, se o Brasil tivesse um melhor sistema educacional e as pessoas conhecessem de modo mais completo a história do país durante a ditadura militar (1964-1985) teria de fato eleito Jair Bolsonaro? E se tivesse havido um esforço mais contundente para esclarecer todas as atrocidades do regime e realizar julgamentos, derrubando a Lei de Anistia, não seríamos uma sociedade melhor, com mais capacidade crítica e, talvez, mais empatia? 

Pois há muitos casos de países que viveram traumas históricos profundos e que estabeleceram, de uma forma ou de outra, comissões da verdade, tribunais especiais, processos na Justiça comum ou outros recursos de reparação, esclarecimento e condenação de delitos cometidos pelo Estado ou por aqueles que optaram pela luta armada para resistir a um regime autoritário e que, em nome disso, também cometeram atrocidades.

Um dos países que está atualmente fazendo um grande esforço para sanar uma dívida com sua própria história e, talvez, evitar uma repetição de um verdadeiro pesadelo é um país vizinho ao Brasil, a Colômbia.

Em novembro de 2016, o Estado colombiano assinou um acordo de paz com uma de suas guerrilhas de esquerda mais antigas, as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), fundada em 1964. A guerra entre essa agrupação e o poder institucional do país teve como consequência a morte de 220 mil pessoas, a desaparição de mais de 100 mil, o deslocamento interno de 7,7 milhões de camponeses que foram obrigados a deixar seus lares para aumentar as periferias e favelas dos grandes centros urbanos e, ainda, outros 5 milhões de exilados para fora do país (desde os anos 1970).

As perdas econômicas, sociais e políticas de tal pesadelo, que durou mais de 50 anos, são incalculáveis. O acordo de paz trouxe algo de esperança, embora existam ainda grandes obstáculos em sua implementação. Um dos aspectos positivos e que vem dando resultado, porém, tem a ver com o tema deste blog. É aquele relacionado à memória do conflito e a reconstrução dos fatos ocorridos desde 1964, quando as Farc se formaram.

O acordo estabeleceu a criação do Sistema Integral de Verdade, Justiça, Reparação e Não-Repetição. Dentro dele, há uma divisão em três áreas. Existe a Jurisdição Especial para a Paz (JEP), que é um tribunal especial que julga e condena a penas de reparação (e não de prisão) responsáveis por delitos considerados de lesa humanidade, cometidos seja por militares, seja por guerrilheiros _ou, ainda, por civis envolvidos com uma das duas partes.

Outra instância é a Unidade de Busca de Pessoas Desaparecidas, que procura, como o nome diz, mapear e encontrar os que ainda estão desaparecidos _vivos ou mortos, e tentar descobrir o que ocorreu com eles.

Por fim, está a Comissão para o Esclarecimento da Verdade, da Convivência e da Não-Repetição. Esta é formada por mais de 500 investigadores, entre eles especialistas em direitos humanos, acadêmicos e representantes de distintos setores da sociedade, também os de minorias como os indígenas e os afro-colombianos. Sua função é completamente distinta das duas anteriores, e se resume a contar o que ocorreu. Não tanto em termos de cifras e nomes, e mais em termos de uma narrativa que explique as distintas fases da guerra, as razões por detrás de determinadas decisões e suas consequências. Nada do que descobre essa comissão será entregue à Justiça, as pessoas dão depoimentos de modo anônimo e nada do que digam e que possa fazer com que sejam identificadas é revelado.

A Comissão tem um mandato de três anos, e terá de entregar um relatório final de tudo o que for descoberto até novembro de 2021. Até aqui, foram entregues informes parciais e realizados eventos, documentários e encontros para debater os resultados. O relatório final, que surgirá de modo impresso e também por meio de uma plataforma multimídia será um valioso acervo de informação para historiadores desse período. Também conterá uma série de recomendações para tentar conter a violência, que nos últimos dois anos tem ressurgido na forma de assassinatos de líderes sociais e de massacres para demarcação de terreno entre os bandos guerrilheiros que tomaram o terreno antes monopolizado pelas Farc.

Haverá, ainda, como fruto do trabalho da comissão, subprodutos para a televisão, rádio e para programas didáticos e de confecção de material escolar, que por sua vez ajudarão a desconstruir estigmas e lugares-comuns sobre a guerra para as gerações futuras.

Se alguém tem dúvidas sobre a utilidade da história, aí está uma das respostas possíveis sobre para que ela serve. Entre outras coisas, para construir sociedades melhor-informadas e, quem sabe, mais preparadas para não cair em armadilhas políticas.

 

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História também é para se ouvir https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/22/historia-tambem-e-para-se-ouvir/ https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/2020/12/22/historia-tambem-e-para-se-ouvir/#respond Tue, 22 Dec 2020 21:41:19 +0000 https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/f1a04f15d9d26436ef48ebe4938e9fc8-300x215.png https://ahistoriaeaseguinte.blogfolha.uol.com.br/?p=148 Para os que pensam que a história é um campo de conhecimento que só pode ser penetrado por meio de livros, de longas sessões de internação em bibliotecas ou em arquivos de documentos, aqui vai uma surpresa. Hoje há produção de conteúdo para formatos diferentes, O que apresento aqui é o exemplo de um deles: o podcast.

Atravessamos uma pandemia que parece, aos que vivemos estes tempos, a mais devastadora de todas. Porém, vasculhar a história nos ilumina, como sempre, no presente. Por exemplo, no século 16, os conquistadores europeus trouxeram em suas embarcações, além da fé católica, do idioma e de sua cultura, nada menos que um punhado de doenças mortais: a varíola, o sarampo, a difteria, a malária e muitas outras enfermidades que, junto com o poderio de fogo, facilitaram muito a matança e a conquista. Além de ajudar a rotular o indígena como um sujeito fraco e inferior. Mas isso não era verdade. Aqueles povos originários, como nós, agora, com o coronavírus, não tinham os anticorpos necessários para sobreviver a essas doenças mortais. E essa foi uma das principais razões da alta mortalidade entre eles.

Quer saber um pouco mais sobre isso? Clique aqui.

Também se costuma repetir, na atualidade, um monte de estereótipos sobre o Paraguai, geralmente pejorativos, referindo-se a tudo o que vem desse país como algo falsificado ou de qualidade inferior. De onde nasceu isso? Estaria relacionado à terrível e sangrenta derrota do país na Guerra do Paraguai, do qual o Brasil participou e cujo final completa agora 150 anos? E por que a Guerra do Paraguai teve tantas interpretações diferentes ao longo do tempo? Por que a historiografia ofereceu tantas versões sobre o ocorrido? Um bom debate sobre isso está aqui.

E quando, no último dia 25 de maio, o cidadão negro norte-americano George Floyd foi morto por uma ação da polícia, você achou que era só mais um caso de violência policial? Pois saiba que, por detrás disso, havia toda uma história conflituosa e difícil da participação dos negros na política e das decisões da sociedade norte-americana desde o século 19. Um pouco mais sobre esse denso e delicado debate está aqui.

Estes são apenas alguns dos episódios de “Hora Americana”, um podcast disponível no Spotify, e comandado por quatro jovens acadêmicos brasileiros, dedicados a trazer a história para discutir temas do presente. O programa é quinzenal e seu objetivo é promover o debate de temas que são candentes para História das Américas, dentro e fora do ambiente universitário, embora a maioria do público seja mais vinculada a este último.

O formato é quinzenal e feito com entrevistas. A cada edição, um especialista sobre o tema escolhido é sabatinado pelos quatro rapazes. Uma da premissa de todos, que trabalham com assuntos de diferentes períodos da história da América, é a necessidade de fugir do eurocentrismo das narrativas tradicionais.

Os quatro realizadores são professores universitários: Caio Pedrosa da Silva, da (UFVJM), que é doutor, pela Unicamp, com a tese: “Mártires de Cristo Rey – Revolução e Religião no México”. Luís Kalil (UFRRJ), também doutor pela Unicamp e autor de “Filhos de Adão – As Teorias Sobre a Origem dos Indígenas”. Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos, doutor pela USP e autor de “A Invenção dos Discos Voadores – Guerra Fria, Imprensa e Ciência no Brasil”. E Valdir Donizete dos Santos Júnior, doutor pela USP e autor de “A Trama das Ideias: Intelectuais, Ensaios e Construção de identidades na América Latina”. 

Em uma conversa com o blog, dois de seus integrantes contaram um pouco de suas motivações e incentivos. Ambos lembraram, como, até pouco tempo atrás, era muito difícil incluir assuntos de história das Américas nos currículos escolares e no debate acadêmico, especialmente os relacionados à América Latina. Mas que isso, aos poucos, vem mudando.

O contexto das redemocratizações no Cone Sul, por exemplo, segundo os acadêmicos, teriam produzido um interesse pelos países vizinhos maior do que o que existia antes. “A redemocratização não foi algo que ocorreu só no Brasil. Houve uma geração de historiadores que é anterior à nossa e que se conectou com a de países vizinhos nessa época”, explica Valdir Donizete dos Santos Júnior. “Só que os tempos da academia são diferentes dos tempos do jornalismo. As pesquisas e teses que começaram a surgir aí foram lançadas bem depois. Esse grupo de pioneiros acabou formando uma nova geração, a nossa geração, que está agora atuando em tantas áreas e com tantos objetos de estudo diferentes, mas todos dentro da História das Américas”, completa.

Caio Pedrosa da Silva concorda, e também crê que questões latentes do presente têm estimulado uma busca de respostas num passado ainda mais distante, nos tempos coloniais. “São eles os temas do racismo, dos indígenas, por exemplo, que estão super-presentes na sociedade hoje, e a raiz está lá atrás”.

Os podcasts são para consumo amplo, mas não perde o tom e o rigor acadêmico, nem cede à panfletagem política. O Hora Americana também produz subprodutos nas redes, com postagens sobre dicas de livros, filmes e demais obras que são citadas pelos especialistas. 

Logo do podcast “Hora Americana” (Foto Divulgação)

Aqui, seguem as redes do programa, que tem conteúdo extra sobre cada episódio:

Facebook.com/horaamericana

Instagram.com/horaamericana

Twitter.com/HoraAmericana

 

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