A república e o pessimismo de Maquiavel
A corrupção foi um dos temas que mais preocuparam os pensadores clássicos que buscaram entender os fundamentos do bom governo e da sociedade virtuosa. Nos séculos XV e XVI, o termo já era comumente utilizado para referir-se a uma situação em que as relações privadas sobrepõem-se às relações públicas, em conflito com o interesse comum. O seu significado abrangia tanto a forma direta de obtenção de favores e privilégios quanto o mecanismo mais sutil e permanente da distorção de leis, instituições e normas em benefício de poucos, dando origem a uma oligarquia, isto é, o governo de poucos para poucos.
A apropriação de vantagens e privilégios seria, assim, a outra face da atividade de indivíduos e associações de indivíduos que legislam, controlam a justiça e administram os negócios públicos em benefício próprio – anulando, desta forma, o governo como expressão da autonomia e da autoridade dos cidadãos.
Os humanistas dos séculos XV e XVI, em especial os da república florentina, empenharam-se no diagnóstico das causas das ordens políticas corruptas, das formas de preveni-las e de suas consequências deletérias para o funcionamento e vigor de cidades e estados. Eles costumavam não ter dúvidas de que a apropriação das instituições do governo e da justiça por uma minoria condenava as comunidades políticas à desagregação e ao declínio.
O assunto foi tratado com destaque, entre outros, por Maquiavel, em seu “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio” (c. 1518). Para Maquiavel, o problema era que, ao ser instalada a corrupção nas instituições de uma república, as dificuldades para eliminá-la seriam imensas.
As dificuldades surgiriam pelo fato de que, assim como os costumes necessitam das leis, as leis dependem dos costumes. Sendo esses últimos corrompidos pelas atitudes que desviam as instituições em favor de poucos, as próprias leis eram incapazes de regenerar, sozinhas, a ordem política.
Diz Maquiavel: “[em Roma] Podia um tribuno, ou qualquer outro cidadão, propor uma lei para o povo; sobre a qual qualquer cidadão poderia falar, em favor ou contra ela, antes de ser deliberada. Essa ordem era boa quando os cidadãos eram bons, pois sempre foi certo que qualquer um que pretendesse uma boa lei para o povo poderia propô-la; e era certo que qualquer um poderia dar sua opinião sobre ela, de forma que tendo o povo ouvido todos os lados, poderia então escolher a melhor. Mas tornando-se maus os cidadãos, essa ordem tornou-se a pior; pois somente os poderosos propunham leis, não para a liberdade comum, mas para os próprios poderosos, e por temor ninguém podia falar contra eles”.
Para manter-se livre da corrupção, Roma ou qualquer comunidade em uma situação similar, na opinião de Maquiavel, deveria ter modificado suas instituições e seus modos de vida para prevenir-se de seus efeitos nocivos. Mas ao consolidar-se o sistema corrupto, só restaria a opção de renovar radicalmente as instituições, seja de forma abrupta, seja de maneira paulatina conforme cada uma das distorções fossem conhecidas.
Aí é que Maquiavel mostrou-se pessimista quanto aos resultados: “eu digo que uma ou outra dessas coisas [alternativas] é quase impossível”. Mesmo entre os potenciais interessados na eliminação da ordem corrupta, o apoio era improvável, “pois homens, acostumados a viver de um modo, não desejam mudar”. Os meios ordinários de mudança (leis, assembleias) também seriam ineficazes, por estarem sob a influência perniciosa da oligarquia, que reage e atemoriza os que desejam a renovação da ordem política.
“De tudo que foi escrito acima, nasce a dificuldade, ou impossibilidade, de manter-se uma república em uma cidade corrompida, ou de criá-la de novo”, conclui Maquiavel.