Depoimentos redesenham massacre em El Salvador
Os EUA estão preocupados com El Salvador.
Afinal, a instabilidade econômica e política dessa nação centro-americana, que só cresceu após a guerra civil (1980-1992), gerou uma imigração volumosa de salvadorenhos aos EUA nas últimas décadas. Além disso, deportados especialmente de Los Angeles, nos anos 1990, jovens voltaram a El Salvador sem perspectivas e entraram para as “maras”, gangues criminosas que hoje aterrorizam camponeses salvadorenhos, que, por sua vez, voltam a buscar refúgio no norte.
Trata-se de um ciclo vicioso de tragédias humanas que se repetem. O norte-americano médio pensa que os salvadorenhos buscam entrar nos EUA apenas porque são pobres, mas no fundo, não é só isso. A imigração é um dos efeitos colaterais de uma relação histórica e muito desigual entre EUA e El Salvador. Hoje, o presidente norte-americano, Joe Biden, tem planos de ajudar economicamente os países do chamado Triângulo do Norte (El Salvador, Guatemala e Honduras). Mas não adianta apenas enviar dinheiro, é preciso colaborar em investimentos para criar trabalho, oportunidades e resolver a crise humanitária nesses países. Uma das providências que se deve tomar é ajudar a revelar a verdade sobre o papel dos EUA na criação das “maras” e, antes disso, em sua atuação clandestina durante a guerra civil.
Além de uma dívida com a história e a verdade, trata-se de um modo de gerar empatia entre as duas nações, essencial para tratar a imigração com mais conhecimento e de modo mais humano.
E é por isso que tem sido importante a retomada do julgamento do massacre de El Mozote, desde 2016, quando caiu a lei de anistia local. O caso está agora numa nova fase de audiências e de coleta de depoimentos, em que estão sendo ouvidos peritos, testemunhas e estudiosos do caso. A ideia é adicionar novas evidências à causa. Depois dessa etapa, o julgamento deve passar para a fase em que os 16 oficiais suspeitos de estarem envolvidos no massacre devem ser levados ao banco dos réus.
Na semana passada, a corte ouviu Terry Karl, uma investigadora de crimes de direitos humanos cometidos na guerra civil salvadorenha, pesquisadora da universidade de Stanford, que revisou arquivos militares e realizou centenas de entrevistas com pessoas vinculadas ao caso. Karl levou ao tribunal evidências de algo que era desconhecido, a presença do sargento Allen Bruce Hazelwood em El Mozote. Além disso, também de que mercenários norte-americanos tinham participado de ações na região. O fato de haver norte-americanos diretamente envolvidos na tragédia, algo que a administração de Ronald Reagan (1981-1989) sempre negou, muda a dimensão do conhecimento sobre a interferência dos EUA nos destinos do conflito. E também aumentam suas responsabilidades com relação aos fatos ocorridos.
Com a ajuda dos poucos sobreviventes, o que se sabe sobre El Mozote (vilarejo que fica a 180km da capital do país) é que, em 1981, o Exército de El Salvador teria chegado até lá. Na praça principal, os soldados juntaram a população. Vendaram e executaram os homens. Depois, as mulheres, não sem antes estuprar várias delas.
Por fim, assassinaram as crianças, além do único soldado que havia se negado a atirar contra menores de idade. O total de civis mortos na operação foi de 960 pessoas.
Oficialmente, as forças de segurança afirmaram que o objetivo era buscar guerrilheiros esquerdistas da Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional (FMLN). Depois da matança, os soldados puseram fogo em corpos e casas e deixaram o local, talvez achando que ninguém se daria conta do desaparecimento daquelas pessoas.
Calados pelo governo, os meios de comunicação locais quase não publicaram nada sobre o tema. Dois jornalistas estrangeiros, porém, decidiram visitar o local, porque tinham escutado um rumor sobre o caso, e desvendaram a história. Foram o norte-americano Raymond Bonner, do New York Times, e a mexicana Alma Guillermoprieto, do Washington Post. A partir daí, o caso ganhou projeção internacional e a cobrança por uma solução é uma demanda da população salvadorenha e dos organismos de direitos humanos.
Mesmo assim, o julgamento atual só começou em 2016, quando foi derrogada a lei de anistia, e a Justiça iniciou o julgamento de 16 ex-militares envolvidos.
Num momento em que o país segue vivendo os problemas relacionados a instabilidade econômica e violência, que forçam a imigração, e, além disso, atravessa uma crise política em que o governo de Nayib Bukele avança contra as instituições, elucidar o que ocorreu em El Mozote é essencial.
Uma conclusão sobre o que ocorreu naquele dia e Justiça para as vítimas é uma demonstração de que o país repudia os abusos de direitos humanos. Justamente num momento em que o país volta a ter um líder autoritário, é mais do que necessário mostrar-lhe que certos limites jamais podem ser ultrapassados outra vez. Porque, se isso ocorrer, já não haverá mais impunidade.