Um clássico do domínio holandês no Nordeste

O lançamento mais recente do escritor Lira Neto, “Arrancados da Terra”, focaliza um pedaço do que foi Pernambuco sob o domínio da Holanda no século 17 para contar a saga de judeus ibéricos perseguidos que acabaram aportando na atual Nova York. Em 1947, José Antonio Gonsalves de Mello publicava “Tempo dos Flamengos”, um clássico da descrição desse interregno de 24 anos (1630-1654) em que invasores protestantes deram as cartas em parte do Nordeste do Brasil.

Gonsalves de Mello foi o primeiro historiador brasileiro a enfurnar-se no riquíssimo acervo do Livro de Atas do Alto Conselho Político do Brasil, que documenta, da perspectiva dos conquistadores, os últimos 19 anos da ocupação. O material pesquisado sobre a atuação dos judeus, narrada em poucas páginas no capítulo final de “Tempo dos Flamengos”, é esmiuçado a ponto de compulsar a participação de israelitas nos contratos para coletar impostos.

A amplitude da movimentação dos judeus na possessão sul-americana da Companhia das Índias Ocidentais permitia que atuassem inclusive no comércio varejista, atividade que lhes era vedada na própria Holanda. O domínio dos dois idiomas, o português e o holandês, e o tirocínio para negócios mal explorados pela companhia deram vantagens a empreendedores judeus, o que motivou ódios e revanchismo da parte de holandeses protestantes e de senhores de engenho brasileiros.

Esse é um dos vários aspectos de interesse, alguns pioneiros, de “Tempo dos Flamengos”. Gonsalves de Mello relata um forte adensamento urbano no Recife, com explosão dos preços de terrenos, aluguéis bem mais elevados que em Amsterdam e precarização habitacional, numa área equivalente à de um retângulo de 1.000 m de comprimento por 100 m de largura. “Não há empregado que possa alugar um quarto pequeno”, reclamava uma comunicação oficial de 1641.

A crueldade no transporte de escravos da África em yachts holandeses –embarcações batizadas com nomes como A Donzela de Enkhuysen, A Esperança Branca e Caridade– é exposta em cifras frias pelo conde Maurício de Nassau: “Vejo pelos registros que embarcaram para o Brasil 6.468 escravos no período de 7 de fevereiro de 1642 a 23 de julho de 1643, dos quais 1.524  faleceram”.

A dificuldade dos holandeses de substituir os senhores e escravos locais na produção do açúcar e o reconhecimento da  necessidade de habilidades específicas para a empreitada, estratégica para os invasores, ficam atestados: “A conquista do Brasil sem os portugueses trará poucas vantagens à Companhia. Sendo o principal negócio ali o fabrico do açúcar, faz-se necessário para isso muitos esforços e singular conhecimento (…) que foram adquiridos após longa aprendizagem [para o que] os holandeses, em tão pouco tempo, não estão habilitados”, escreveu  Nassau em 1646.

Temas como concessões de obras e serviços públicos, ordenamento urbano, instrução de povos indígenas, hábitos alimentares e práticas religiosas estão documentados com pormenores incomuns para o padrão do Brasil seiscentista.

Em 1642, preocupado com o que os economistas do século 20 viriam a chamar de “custos de transação” da administração da Justiça, o conde de Nassau desabafou para os mandachuvas na Holanda: “Os salários ou emolumentos dos secretários, notários, procuradores, solicitadores, tradutores, meirinhos, mensageiros, executores e outros oficiais da Justiça elevam-se a tanto que duvido que haja lugar no mundo onde tanto se lhes pague, além das multas, percentagens, extorsões, comissões dos escoltetos e seus subordinados, que não se contentam com pouco.”