Peste e pânico em Araraquara

Os habitantes de Araraquara esvaziaram as ruas com medo da peste. Ela parecia ter poupado a população da hecatombe poucos meses antes, quando oligarcas negacionistas declararam superada a ameaça, mas se abateu como praga bíblica nesta segunda onda.

A moléstia matou o pároco no Natal. Seu substituto sucumbiu no mesmo verão sem ter tempo de receber os últimos sacramentos. O presidente da Câmara foi fulminado. Coveiros do cemitério tombaram, o que alimentou soturnas teorias sobre o espalhamento do mal.

A vida como era antes colapsou. Animais abandonados pelos donos se exauriram nas residências trancadas, o lixo se acumulou, o mau cheiro se espalhou e gatunos liderados por um sargento saquearam tudo. Procedimentos eleitorais foram suspensos. Os serviços que insistiram em funcionar se mudaram para Américo Brasiliense, logo ao lado.

O governo do estado interveio, com seus regramentos e comissões de sanitaristas. Segreguem-se os doentes, fora com a imundície. O juiz de direito de Araraquara não quis  aplicar multas a quem desobedeceu aos decretos. Médicos locais –entre eles um certo dr. Dória, também delegado– não toparam colaborar com o confinamento obrigatório e foram sendo substituídos por figurões enviados pela capital.

Quem fugiu para outras paragens arriscou-se. Donos de hospedarias foram obrigados a delatar todo hóspede que chegava de Araraquara. Proprietários foram convocados a entregar a chave das casas vazias ou vê-las arrombadas pelas autoridades higienizadoras.

Em outras cidades do interior tomadas pela infecção, motins pela liberdade individual desafiaram as ordens de resguardo da gestão estadual. O jornal da oposição tomou o partido dos comerciantes prejudicados. Os situacionistas louvaram as ações do governo estadual, como o pai severo e zeloso que salva vidas.

A Câmara quis aumentar impostos para tapar o buraco na arrecadação. A oposição enraivecida sugeriu que, em vez disso, os vereadores acabassem com suas sinecuras ou renunciassem de vez, poupando desgastantes cassações de mandato.

Tudo isso aconteceu em 1895 e 1896 na próspera comarca da região central do estado de São Paulo, então servida pela Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Os trilhos que levavam o café para o porto de Santos traziam de lá imigrantes europeus e a febre amarela, que se interiorizava desde o ano da Proclamação da República. O vetor da doença, o mosquito Aedes aegypti, ainda não havia sido identificado, e as autoridades atiravam para todos os lados na tentativa de compreendê-la e evitar a sua proliferação.

O relato integra a tese de doutoramento “Poder e Saúde: a República, a Febre Amarela e a Formação dos Serviços Sanitários do Estado de São Paulo”, que Rodolpho Telarolli Junior defendeu na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp em 1993.