Trabalho qualificado também marcou escravidão no Brasil

O estudo dos efeitos do sistema escravista sobre africanos e descendentes mantidos sob a opressão do cativeiro faz parte de uma tradição bem estabelecida no Brasil. Curiosamente, a tendência da literatura foi enfatizar mais aspectos psicológicos e morais do que a realidade vivida pelos escravizados.

Os poucos autores do século 19 que atentaram para questões como saúde, alimentação, integridade física, qualificações ou mortalidade elevada dos escravos geralmente o fizeram em obras destinadas a orientar os proprietários sobre a produção e o trabalho nas fazendas, como por exemplo Carlos Augusto Taunay, em Manual do Agricultor Brazileiro (2a edição, 1839), Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, em Memoria sobre a Fundação e Costeio de uma Fazenda na Provincia do Rio de Janeiro (3a edição, 1878; 1a edição em 1847) e Antonio Caetano da Fonseca, no seu Manual do Agricultor dos Generos Alimenticios (1863).

Mais comuns entre os autores foram opiniões sobre a psicologia, a moral e as atitudes dos escravos em relação à família e a outros aspectos da vida social e econômica. Essa tendência continuou nos estudos das ciências sociais no século 20.

A ausência de dados sobre a realidade nas fazendas não impediu que vários desses autores, antigos e mais recentes, especulassem sobre as capacidades e atitudes dos escravos em relação ao trabalho, seja durante a escravidão ou após a abolição em 1888. Mesmo quando existiam informações mais detalhadas, como as do censo demográfico de 1872 ou de testemunhos valiosos de viajantes contemporâneos, o habitual foi que ideias arraigadas prevalecessem ou pelo menos diminuíssem a disposição de buscar evidências que conflitassem com o senso comum.

Um exemplo é Perdigão Malheiro, que em sua obra A Escravidão no Brasil. Ensaio Historico-Juridico-Social, publicada em 1866 e 1867 (3 volumes), analisou em profundidade as ideologias, as leis e o sistema de exploração do trabalho de escravos no Brasil em comparação com outras regiões das Américas. O autor não demonstrou dúvida a certa altura de seu livro em considerar o escravizado como um indivíduo “tão inteligente como qualquer outro; dotado de qualidades estimáveis, coragem, paciência, resignação, sobriedade; capaz de todo aperfeiçoamento intelectual e moral, próprios da natureza humana.”

No mesmo livro, porém, ao refletir sobre a proposta de abolição da instituição escravista que ele defendia em tese como uma necessidade vital, Perdigão Malheiro alegou que o fim imediato do sistema seria “absolutamente inadmissível na atualidade”. Além da “desorganização do trabalho e da produção”, da ameaça à “riqueza pública e privada”, da “desordem nas famílias” e do ataque “à ordem pública”, o autor dizia que a abolição imediata seria danosa aos próprios escravos. A capacidade de “aperfeiçoamento intelectual e moral” antes citada foi esquecida e Perdigão Malheiro só enxergou a “vagabundagem, os vícios, o crime, a prisão, a devassidão, a miséria, eis a sorte que naturalmente… esperaria” os escravos se alcançassem a liberdade naquele momento.

A visão negativa das habilidades e capacidades dos escravizados foi compartilhada e difundiu-se no século 20 mesmo entre as ciências sociais. Para Florestan Fernandes, em A Integracão do Negro na Sociedade de Classes (1964), ex-escravos após a abolição teriam se autoexcluído do mercado de trabalho regular como uma expressão de liberdade e dignidade, atitude que sob as novas condições de um mercado competitivo conduziu “seus agentes humanos pelo plano inclinado da miséria, da corrupção e do desalento coletivo”.

Sobre as habilidades de trabalho dos ex-escravos e seus descendentes, Florestan Fernandes recorreu a algumas entrevistas para concluir que “eram raros os negros que tinham profissão, como pedreiro, carpinteiro, barbeiro, alfaiate, sapateiro. Eram profissões difíceis e os negrinhos aprendizes tinham dificuldade em conseguir colocação”.

Celso Furtado foi outro autor clássico que adotou uma visão semelhante, em sua Formação Econômica do Brasil (1959): “Cabe tão somente lembrar que o reduzido desenvolvimento mental da população submetida à escravidão provocará a segregação parcial desta após a abolição”, agravada pela sua “forte preferência pelo ócio”.

As evidências históricas, no entanto, dão pouco crédito às opiniões negativas desses autores. Historiadores como Manolo Florentino & José Roberto Góes e Carlos Lima, utilizando inventários post-mortem e outras fontes, já demonstraram há tempos que escravos exerciam profissões qualificadas em número expressivo em áreas rurais e urbanas.

Outras fontes até mais acessíveis do que inventários trazem evidências ainda mais claras. O recenseamento demográfico de 1872, o primeiro de âmbito nacional do Brasil independente, é um exemplo. Além de conter informações como idade, cor, religião e estado civil da população de comarcas e províncias de todo país, o censo de 1872 registrou as ocupações de livres e escravos em mais de 20 categorias de trabalho, de empregados públicos e trabalhadores agrícolas a operários e serviços domésticos.

Uma das categorias da classificação ocupacional do censo de 1872 reuniu o trabalho manual mais qualificado e valorizado no século 19: o dos “operários”, parte das chamadas “profissões manuais ou mecânicas” do recenseamento. Essa categoria abrangia o trabalho geralmente de natureza artesanal, que exigia longo período de aprendizado, destreza e habilidade. Ocupações como as de carpinteiro, ferreiro, alfaiate, sapateiro e mecânico recebiam, portanto, maior remuneração no mercado de trabalho livre e valorizavam os escravos que as executavam.

A título de exemplo, entre os maiores de 10 anos de ambos os sexos, a província de São Paulo possuía 485.632 e 127.467 trabalhadores livres e escravos, respectivamente, em todos seus municípios em 1872. Desses totais, 4,6% eram trabalhadores artesãos livres e 4,3% eram artesãos escravos. Isto é, uma proporção praticamente idêntica de livres e escravos exercia ocupações qualificadas, que exigiam habilidades especiais, experiência e autonomia na atividade do trabalho.

A capacidade intelectual e de aprendizado dos escravos foi testada no ambiente mais hostil e violento do trabalho sob cativeiro, como de fato havia sugerido Perdigão Malheiro em 1867. Se após a Abolição, ex-escravos e descendentes enfrentaram obstáculos e desigualdade, como evidentemente ocorreu e com consequências visíveis até hoje, as causas não devem ser atribuídas às suas atitudes ou características individuais.