Pauliceia 2.0: um experimento de ciência aberta com a história de São Paulo

Por Ana Maria Barbour e Luís Ferla

É inevitável reconhecer a influência de recursos digitais no trabalho dos pesquisadores em humanidades. Se por um lado o uso de tecnologias nessas áreas aumenta cada vez mais, e com elas novas possibilidades de investigação, por outro, desafios metodológicos e avaliativos se impõem.

Como vantagem, vale destacar a capacidade que as máquinas, softwares e a internet têm de promover uma ciência aberta, isto é, a democratização do conhecimento, com a ampliação do alcance social da produção acadêmica e incorporação de contingentes extrauniversitários. Tais objetivos têm sido muitas vezes perseguidos por meio de projetos colaborativos e compartilhados – que envolvem acadêmicos e a comunidade –, viabilizados pelas próprias tecnologias utilizadas.

Como desafio vemos, entre outros, o conflito  entre as exigências de precisão do mundo dos computadores e a inexatidão das humanidades, sempre à volta com as subjetividades inerentes à interpretação da vida social. Sem falar na falta de critérios institucionais para avaliar o trabalho do pesquisador em projetos de humanidades digitais, estando aqueles ainda presos ao paradigma do texto impresso.

Dentre as tecnologias que despertaram o interesse dos historiadores desde os anos 2000 estão os Sistemas de Informação Geográfica (SIG). Trata-se de projetos elaborados com softwares que permitem gerenciar grandes quantidades de dados, dando sua localização no espaço e no tempo, sendo o mapa a forma mais fácil de comunicar os resultados dessas análises. 

Um exemplo bem-sucedido, que agrega os princípios da ciência aberta e o uso de SIG Histórico, é o portal Pauliceia 2.0 – lançado em sua versão beta em 2018 – que propõe o mapeamento colaborativo da história da cidade de São Paulo entre 1870 a 1940. A iniciativa reúne pesquisadores da Unifesp, INPE e da Emory University, e teve financiamento da Fapesp.

Ali, qualquer pessoa pode alimentar os seus dados espacializáveis, tendo como resultado uma visualização de sua pesquisa, podendo usá-la em produções científicas. Ao mesmo tempo, a cada alimentação, a base comum é enriquecida, transformando-se em um acervo de material de pesquisa passível de dar suporte a reflexões historiográficas. O controle da informação sobre o conteúdo colocado cabe à própria comunidade de usuários, semelhante ao modelo Wikipedia. A interface inclui ainda um geolocalizador, que possibilita ao usuário localizar endereços do passado (entenda melhor aqui a concepção do projeto).

Hoje já é possível encontrar camadas de usuários sobre temas diversos, como a produzida pelo grupo Hímaco, mostrando a abrangência da grande e trágica enchente de 1929. Essa camada pode ser contraposta a outras e subsidiar análises. Por exemplo, a camada de indústrias do Bom Retiro do começo do século 20, criada também pelo grupo Hímaco com base na pesquisa da professora Sarah Feldman, da USP. A contraposição sugere as fábricas que, possivelmente, foram atingidas pelas águas em 1929.

Mapa produzido através da plataforma, cruzando dados sobre indústrias do Bom Retiro e a enchente de 1929 (Imagem: Reprodução)
Mapa produzido através da plataforma, cruzando dados sobre indústrias do Bom Retiro e a enchente de 1929 (Imagem: Reprodução)

O estudo do Hímaco, presente no Pauliceia 2.0, já deu suporte, inclusive, a um levantamento feito pela Folha que, ao cruzá-lo com dados recentes do CGE (Centro de Gerenciamento de Emergências), mostrou que  São Paulo revive as mesmas enchentes há 91 anos.

Assim, a plataforma permite não apenas uma nova forma de divulgação das pesquisas sobre a história da cidade de São Paulo, possibilitando a sua espacialização,  mas ela mesma se constitui em um ambiente articulador e integrador de pesquisas as mais diversas, estimulando novas e inesperadas reflexões. Essas características conformam o caráter colaborativo e de ciência aberta do projeto.

A experiência do projeto Pauliceia 2.0 não dá conta das possibilidades da presença das tecnologias digitais no ambiente de trabalho do historiador, nem tampouco dá subsídio para refletir acerca de toda a complexidade das transformações metodológicas e epistemológicas envolvidas. Mas é pretensão da equipe do projeto que, em alguma medida, ela pode contribuir para o debate.

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Ana Maria Barbour é jornalista e historiadora, integrante do projeto Pauliceia 2.0

 Luís Ferla é professor de História da UNIFESP e coordenador do projeto Pauliceia 2.0