O último Natal de Robespierre

Faz 80 anos que o historiador norte-americano Robert Roswell Palmer (1909-2002) publicou seu relato dos personagens que comandaram o famigerado Comitê de Salvação Pública durante o Terror –de meados de 1793 a meados de 1794– na Revolução Francesa. “Twelve who Ruled” [os doze que governavam] não tem notas de rodapé nem listagem bibliográfica ao final, mas ajudou a formar e informar gerações de universitários e pesquisadores nos Estados Unidos.

A fórmula do sucesso não está só na fluidez dos seus 16 capítulos, mas também no argumento de que a importância desse período não se restringe à extrema violência que o marcou. Naqueles meses frenéticos, a França escapou da fragmentação interna e da invasão externa, elevou a uma escala inédita a mobilização nacional de recursos humanos e materiais para os objetivos traçados pelo governo e travou de modo específico a batalha entre o poder popular e o oligárquico.

Escrevendo quando o mundo embarcava numa convulsão bélica deflagrada por regimes totalitários, Palmer tinha a sensibilidade aguçada para as pistas que a catarse da França setecentista pudesse ter deixado. Se quiser ler um capítulo iluminado por essa perspectiva, tente o 11º, atravessado por dois discursos invernais de Maximilien Robespierre perante a Convenção. O primeiro deles, mais conhecido, é o do Natal de 1793, o dia 5 do mês Nevoso no calendário republicano.

Robespierre, a estrela jacobina, lançava ali esboços de uma doutrina do governo revolucionário explorando a dicotomia entre um desejável mas ainda distante regime constitucional, de um lado, e um período de luta pela sobrevivência como aquele, do outro. Leia alguns trechos, numa tradução livre do francês:

“O objetivo do governo constitucional é conservar a República; o do governo revolucionário é fundá-la.”

“A revolução é a guerra da liberdade contra seus inimigos; a constituição é o regime da liberdade vitoriosa e pacífica.”

“O governo revolucionário necessita de uma atividade extraordinária (…). Ele está submetido a regras menos uniformes e menos rigorosas, porque as circunstâncias em que se encontra são tumultuosas e móveis e sobretudo porque ele é forçado a mobilizar sem cessar recursos novos e tempestivos para perigos novos e urgentes.”

“Sob o regime constitucional, praticamente basta proteger os indivíduos contra o abuso do poder público; sob o regime revolucionário, o próprio poder público é obrigado a se defender contra todas as facções que o atacam.”

“O governo revolucionário deve aos bons cidadãos toda a proteção nacional; deve aos inimigos do povo apenas a morte.”

“Se o governo revolucionário deve estar mais ativo na sua marcha e mais livre nos seus movimentos que o governo regular, ele seria menos justo e menos legitimo? Não. Ele se apoia sobre a mais santa de todas as leis, a salvação do povo; sobre o mais irrefutável de todos os títulos, a necessidade.”

“O navio constitucional não foi construído para ficar sempre no estaleiro; mas somos obrigados a lançá-lo ao mar em plena tempestade e sob a influência de ventos contrários?”

“Ele deve navegar entre dois escolhos: a fraqueza e a temeridade, o moderantismo e o excesso. O moderantismo está para a moderação assim como a impotência está para a castidade; e o excesso remonta à energia como a hidropisia à saúde.”

“Quem então decodificará todas essas nuances? Quem traçará a linha de demarcação entre todos os excessos contrários? O amor à pátria e à verdade.”

Quem passou atento pela história dos séculos 19 e 20 ouviu ecos desse discurso. É algo na linha:  “Vamos fazer uma ditadurazinha momentânea aqui, só enquanto nós, intérpretes legítimos dos interesses do povo, expurgamos os males do mundo; depois disso inaugura-se a nova fase da marcha coletiva, pacífica e próspera”.

Não é à toa que Palmer classifica o discurso do último Natal de Robespierre –ele perderia a cabeça no verão seguinte– como um marco para a retórica de autojustificação de regimes autocráticos modernos.