Café impulsionou indústria de máquinas já no século 19
Definir indústria e agricultura como setores econômicos separados tem sua utilidade enquanto classificação formal e para fins estatísticos. Entretanto, essa divisão pouco ajuda a entender ou até obscurece o que aconteceu nas origens da industrialização de vários países, entre eles o Brasil. Pode ser surpreendente para alguém descobrir, por exemplo, que mesmo atividades industriais sofisticadas tinham relação estreita com a produção agrícola. Ou então que essas atividades industriais brotaram em meio à expansão cafeeira do século 19 em regiões como as do interior de São Paulo. Warren Dean mostrou como essas relações se desenvolveram em um livro que muitas vezes é esquecido, publicado no distante ano de 1969.
As poucas estatísticas existentes no século 19 dificultam saber o que estava ocorrendo além da superfície das exportações e da política econômica, mas há formas alternativas para reconstituir essa história. Uma delas é por meio da vida de indivíduos e empresas, como a Companhia Mac Hardy.
Guilherme Mac Hardy foi um mecânico escocês que chegou ao Brasil em 1872 para trabalhar na Milford & Lidgerwood, que se instalou em Campinas em 1864 como casa de importação, realizando reparos, montando e adaptando em suas oficinas as máquinas agrícolas vendidas às fazendas da região. Mac Hardy logo saiu da Lidgerwood e, em 1875, fundou sua própria empresa, a Companhia Mac Hardy, começando a importar mas também a produzir máquinas de beneficiamento de café, ferramentas e utensílios de ferro, chegando anos mais tarde a motores e caldeiras.
Em 1877, a Mac Hardy já estava sendo acusada em anúncios nos jornais por Guilherme P. Ralston & Cia, representante e agente importador das máquinas Lidgerwood, de violar direitos de patente e produzir equipamentos que eram “apenas um regresso aos primeiros modelos introduzidos pelo Sr. Lidgerwood há 14 anos e em todo caso fabricado de materiais muito inferiores.” O importador anunciava aos fazendeiros a instauração de um processo judicial contra Mac Hardy e, ao mesmo tempo, a oferta de um desconto de 20% em relação aos preços das máquinas agrícolas do concorrente.
A Companhia Mac Hardy expandiu-se e abriu seções de fundição, mecânica e carpintaria, empregando nada menos do que 300 operários em 1901. Visitantes estrangeiros e estudiosos que conheceram as fazendas de café da época frequentemente notaram a presença das máquinas de beneficiamento da Mac Hardy e de outras empresas como a própria Lidgerwood, a Engelberg de Piracicaba e a Arens, então sediada em Campinas.
C. F. Van Delden Laèrne, um observador atento e meticuloso enviado ao Brasil pelo governo holandês, encontrou máquinas de beneficiamento de café na maioria das cerca de 75 fazendas que visitou em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo entre 1883 e 1884. O engenheiro Francisco Ferreira Ramos, em seu livro Industries and Electricity in the State of São Paulo (1904), chegou a dizer que o número de máquinas para despolpar café nas fazendas de São Paulo atingia a casa de milhares.
Mac Hardy, Lidgerwood, Arens e Engelberg são apenas algumas das companhias que produziam máquinas no interior de São Paulo. Em 1873, já havia pelo menos quinze fábricas e oficinas que produziam máquinas e equipamentos diversos no estado de São Paulo, segundo o estudo feito por Michel Marson. Em 1891, esse número cresceu para vinte e três, aumentando também o porte e a especialização das empresas, inclusive dando os primeiros passos para atender parte da demanda de equipamentos do próprio setor industrial. A linha de produção de máquinas era variada. Só para o café, havia despolpadores, lavadores, secadores, limpadores, descascadores, ventiladores, separadores, brunidores, catadores e ensacadores que eram empregados em diferentes fases do beneficiamento do produto.
Além do número de produtores e do quanto produziam, outras informações dessas empresas são raras ou desconhecidas até agora. Quem foram, por exemplo, os mecânicos, operários e aprendizes, imigrantes e brasileiros, que tocaram esses empreendimentos que requeriam sofisticado conhecimento técnico na época? Apesar das dificuldades, vários indícios podem ser encontrados em lugares insólitos, como em anúncios de jornais, inventários post-mortem e registros de patentes, como fez Renata Cipolli D’Arbo em sua pesquisa.
As chamadas “patentes de invenção” são uma sinal de que as empresas não se limitaram a reproduzir projetos prontos do exterior. Pelo contrário, elas buscaram realizar adaptações e inovações incrementais nos seus produtos para consolidar e ocupar novos mercados. Entre 1883 e 1900, foram registradas 237 patentes de máquinas de beneficiamento de café no Brasil. Dessas, a Engelberg de Piracicaba, por exemplo, foi responsável por nove patentes de descascadores, ventiladores e catadores, para café, arroz e outros grãos. A Mac Hardy registrou oito patentes no mesmo período para descascadores, separadores, ventiladores, catadores e brunidores de café e arroz.
A expansão agrícola no século 19 criou oportunidades até mesmo para a produção local de manufaturas sofisticadas tecnologicamente, em uma economia em grande medida dependente do trabalho escravizado de africanos e descendentes. Em novos setores, a competição era acirrada e até litigiosa, como ocorreu na disputa entre Mac Hardy e Lidgerwood em Campinas.
Mas é provável que a própria concorrência acirrada entre os produtores de máquinas tenha sido um dos motivos que fizeram com que a Mac Hardy e outras empresas inovassem e prosperassem. Essas empresas foram bem-sucedidas na concorrência com as importações de máquinas agrícolas sem contar, até onde se sabe, com qualquer proteção tarifária na época. Tal fato parece inusitado hoje, mas pode também ser um exemplo.