Colômbia tenta trazer à luz a história de sua guerra interna
O pensador irlandês Edmund Burke (1729-1797) escreveu que “o povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la”. Embora não exista garantia nenhuma de que, de posse de conhecimentos sobre o passado, a humanidade possa voltar a cometer os mesmos (ou piores) erros, é preciso concordar que, pelo menos, a compreensão da história nos ajuda a curar feridas, reconciliar sociedades e nos oferece uma oportunidade de realizar escolhas políticas melhor informadas.
Por exemplo, será que, se o Brasil tivesse um melhor sistema educacional e as pessoas conhecessem de modo mais completo a história do país durante a ditadura militar (1964-1985) teria de fato eleito Jair Bolsonaro? E se tivesse havido um esforço mais contundente para esclarecer todas as atrocidades do regime e realizar julgamentos, derrubando a Lei de Anistia, não seríamos uma sociedade melhor, com mais capacidade crítica e, talvez, mais empatia?
Pois há muitos casos de países que viveram traumas históricos profundos e que estabeleceram, de uma forma ou de outra, comissões da verdade, tribunais especiais, processos na Justiça comum ou outros recursos de reparação, esclarecimento e condenação de delitos cometidos pelo Estado ou por aqueles que optaram pela luta armada para resistir a um regime autoritário e que, em nome disso, também cometeram atrocidades.
Um dos países que está atualmente fazendo um grande esforço para sanar uma dívida com sua própria história e, talvez, evitar uma repetição de um verdadeiro pesadelo é um país vizinho ao Brasil, a Colômbia.
Em novembro de 2016, o Estado colombiano assinou um acordo de paz com uma de suas guerrilhas de esquerda mais antigas, as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), fundada em 1964. A guerra entre essa agrupação e o poder institucional do país teve como consequência a morte de 220 mil pessoas, a desaparição de mais de 100 mil, o deslocamento interno de 7,7 milhões de camponeses que foram obrigados a deixar seus lares para aumentar as periferias e favelas dos grandes centros urbanos e, ainda, outros 5 milhões de exilados para fora do país (desde os anos 1970).
As perdas econômicas, sociais e políticas de tal pesadelo, que durou mais de 50 anos, são incalculáveis. O acordo de paz trouxe algo de esperança, embora existam ainda grandes obstáculos em sua implementação. Um dos aspectos positivos e que vem dando resultado, porém, tem a ver com o tema deste blog. É aquele relacionado à memória do conflito e a reconstrução dos fatos ocorridos desde 1964, quando as Farc se formaram.
O acordo estabeleceu a criação do Sistema Integral de Verdade, Justiça, Reparação e Não-Repetição. Dentro dele, há uma divisão em três áreas. Existe a Jurisdição Especial para a Paz (JEP), que é um tribunal especial que julga e condena a penas de reparação (e não de prisão) responsáveis por delitos considerados de lesa humanidade, cometidos seja por militares, seja por guerrilheiros _ou, ainda, por civis envolvidos com uma das duas partes.
Outra instância é a Unidade de Busca de Pessoas Desaparecidas, que procura, como o nome diz, mapear e encontrar os que ainda estão desaparecidos _vivos ou mortos, e tentar descobrir o que ocorreu com eles.
Por fim, está a Comissão para o Esclarecimento da Verdade, da Convivência e da Não-Repetição. Esta é formada por mais de 500 investigadores, entre eles especialistas em direitos humanos, acadêmicos e representantes de distintos setores da sociedade, também os de minorias como os indígenas e os afro-colombianos. Sua função é completamente distinta das duas anteriores, e se resume a contar o que ocorreu. Não tanto em termos de cifras e nomes, e mais em termos de uma narrativa que explique as distintas fases da guerra, as razões por detrás de determinadas decisões e suas consequências. Nada do que descobre essa comissão será entregue à Justiça, as pessoas dão depoimentos de modo anônimo e nada do que digam e que possa fazer com que sejam identificadas é revelado.
A Comissão tem um mandato de três anos, e terá de entregar um relatório final de tudo o que for descoberto até novembro de 2021. Até aqui, foram entregues informes parciais e realizados eventos, documentários e encontros para debater os resultados. O relatório final, que surgirá de modo impresso e também por meio de uma plataforma multimídia será um valioso acervo de informação para historiadores desse período. Também conterá uma série de recomendações para tentar conter a violência, que nos últimos dois anos tem ressurgido na forma de assassinatos de líderes sociais e de massacres para demarcação de terreno entre os bandos guerrilheiros que tomaram o terreno antes monopolizado pelas Farc.
Haverá, ainda, como fruto do trabalho da comissão, subprodutos para a televisão, rádio e para programas didáticos e de confecção de material escolar, que por sua vez ajudarão a desconstruir estigmas e lugares-comuns sobre a guerra para as gerações futuras.
Se alguém tem dúvidas sobre a utilidade da história, aí está uma das respostas possíveis sobre para que ela serve. Entre outras coisas, para construir sociedades melhor-informadas e, quem sabe, mais preparadas para não cair em armadilhas políticas.