Qual terá sido a pandemia mais letal no Brasil: a atual ou a de 1918?

Foi Nelson Teich, ministro abreviado da Saúde, quem suscitou a indagação do título. Num tuíte natalino, o médico carioca afirmou que a Covid-19 “é a pior pandemia que o Brasil já viveu”. Sustentou o enunciado em comparações com a gripe espanhola, que fez seus maiores estragos aqui entre a primavera de 1918 e o inverno de 1919.

Teich conclui que a mortalidade relativa ao tamanho da população daquela moléstia infecciosa, transposta para a realidade de hoje, significaria algo em torno de 240 mil mortes. O Brasil se aproxima de 200 mil óbitos notificados por Covid-19, mas é possível que essa cifra esteja subestimada –o ex-ministro acredita que em 20% no mínimo. Sendo assim, estaríamos fadados a ultrapassar nas próximas semanas a marca da epidemia de influenza de 102 anos atrás.

O que ele afirma estará correto se a estimativa das 35 mil mortes por gripe espanhola no Brasil, usada na base do raciocínio, for plausível. De onde ela vem? Origem recorrente é um verbete do “Atlas Histórico do Brasil”, da FGV. Mas o verbete não explicita a fonte do cálculo, e suas notas não me levaram a ela. Se você souber, escreva para o blog.

Trabalhando com documentos do governo paulista, a historiadora e demógrafa Maria Silvia Bassanezi computou 20.503 mortes notificadas por gripe no estado em 1918 e 1919 –no ano pré-epidêmico de 1917, os registros acusaram 509 óbitos por gripe. Havia em solo paulista 4,6 milhões de habitantes no fim da segunda década do século passado, 15% da população brasileira. Faz sentido que tenham ocorrido em São Paulo quase 60% das supostas 35 mil mortes brasileiras?

Bassanezi reúne apenas o que os relatórios governamentais notificam, o bastante para jogar água na hipótese de que as mortes no território brasileiro superaram 35 mil. Mas há também outro aspecto do problema: a subnotificação.

Em abril, na Folha, falei do trabalho de técnicos da administração paulista da época que revisaram os registros oficiais à luz de um raciocínio até hoje empregado. Uma epidemia costuma elevar, no período e no local que incide, a quantidade usual de mortes por fatores naturais, a despeito de as causas terem sido bem anotadas.

Observar o volume total de óbitos pouco antes, durante e pouco depois da onda epidêmica é um modo de estimar o impacto real da doença. Com cautelas, o excesso de mortes em relação a um período normal pode ser atribuído à infecção. Foi o que os técnicos fizeram num minucioso boletim estatístico publicado em 1919.

Os autores, da Diretoria do Serviço Sanitário, deduziram que, nos 92 dias do último trimestre de 1918, a gripe tinha matado 6.861 pessoas só na capital paulista, 29% mais que na estatística oficial. Para o Rio, então capital da República, a análise chegou à estimativa de 14.504 óbitos, 17% acima do que constava nas notificações.

Taxas agudíssimas de mortalidade, de 1.300 a 1.600 óbitos por 100 mil habitantes, concentradas num único trimestre e detectadas em apenas duas capitais também me levam a cogitar que está subestimada –possivelmente bastante subestimada– a cifra comumente divulgada de 35 mil vítimas da gripe espanhola em todo o Brasil.