Pobreza, Distribuição e Crescimento: Uma História do Nosso Contrato Social
com Julia Duó
Durante a administração de Antonio Delfim Netto, ministro da Fazenda entre 1967 e 1974, o Brasil passou pelo chamado “milagre econômico”. Nesse período, mesmo com o PIB crescendo em média 10% ao ano, grupos de baixa renda tiveram seus salários reduzidos e viram sua participação na renda nacional diminuir de mais de 1/6 em 1960 para menos de 1/7 em 1970.
Embora o milagre econômico tenha gerado crescimento, o aumento da desigualdade brasileira foi um resultado das políticas econômicas implementadas durante o regime militar. Para Delfim Netto, à época, esse não era um problema. Segundo ele teria dito, o bolo precisava crescer antes de ser repartido. O modelo econômico da ditadura colapsou antes de explicar aos brasileiros quando e como o bolo seria repartido.
A analogia do bolo que deve crescer antes de pensarmos em repartir-lo não foi inventada por Delfim. Na verdade, esse pensamento econômico teve suas origens no período entre a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial. Na década de 1930, houve níveis crescentes de pobreza nas maiores economias do mundo e a saída dada pelos governos à época foi focar esforços no aumento da produtividade econômica. Essa política foi reforçada pelas demandas militares colocadas pela Segunda Guerra Mundial e os níveis de prosperidade alcançados no pós-guerra pareciam comprovar a eficácia deste modelo econômico. No entanto, já no fim da década de 1950, começou a ficar aparente que, apesar de o bolo ter crescido para alguns, muitos permaneciam sem acesso a ele ou mesmo com acesso desigual a suas fatias. Como medir a crescente pobreza e desigualdade que aumentavam paralelamente à prosperidade nas economias desenvolvidas e nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento?
É nesse momento que o Banco Mundial, organização internacional criada em 1944 em Bretton Woods, começa a adquirir proeminência nos debates sobre pobreza e desigualdade e sobre suas formas de mensuração. É nessa época também que se consolida entre economistas a ideia de que o objetivo deveria ser o de medir pobreza absoluta, ao invés de focarmos em desigualdade e pobreza relativa.
Como mostra o historiador Rob Konkel, a rede de especialistas centrada no Banco Mundial julgava que desigualdade e pobreza relativa tinham dois problemas sérios nas décadas de 1950 e 1960. Em primeiro lugar, eram conceitos difíceis de serem medidos (Como comparar desigualdade entre países? Como definir pobreza relativa para possibilitar sua mensuração? Pobreza relativa nos Estados Unidos teria o mesmo significado que na Índia?). Em segundo lugar, a questão da desigualdade podia ser facilmente politizada, um problema crucial no auge da Guerra Fria. Já a pobreza absoluta se provou de mais fácil mensuração e comparação após o estabelecimento de uma linha internacional da pobreza (definida em USD 1 por dia no World Development Report 1990 do próprio Banco Mundial).
Apesar do ativismo de grupos divergentes, o protagonismo do Banco Mundial nas décadas de 1960, 1970 e 1980 foi essencial para consolidar a pobreza absoluta como medida de pobreza às custas de pobreza relativa e de preocupações com a distribuição de renda. Para os especialistas dessa época, o conceito de pobreza absoluta não apenas parecia mais simples de medir e de abordar como problema de governança global, mas também estava muito mais alinhado ao discurso de aumento de produtividade doméstica como resposta aos anseios por prosperidade generalizada.
Foi só recentemente que o Banco mudou de opinião e passou a liderar um esforço para incluir desigualdade na agenda econômica internacional. Isso ocorreu quando começou a ficar cada vez mais claro que países que não conseguem conciliar aumento da produtividade com baixos níveis de desigualdade também não conseguem sustentar trajetórias longas de crescimento econômico e tampouco manter-se politicamente estáveis.
Este foi o destino do modelo econômico dos anos do “milagre econômico”, que acabou entrando em colapso e nos legando uma década perdida nos anos 1980.
Desde então, nossa sociedade fez algum progresso no combate à desigualdade. Na democratização, tentamos conciliar crescimento e redistribuição com um novo contrato social instaurado na década de 1980, no qual a sociedade brasileira aceitava baixos índices de crescimento econômico em troca de mais redistribuição de renda.
Na verdade, a sociedade brasileira nunca conseguiu construir um arranjo institucional capaz de conciliar crescimento econômico e redução da desigualdade no longo prazo. Como resultado, hoje vemos nossas taxas de crescimento estagnadas e a pobreza volta a crescer. Nosso desafio na década que está para começar será construir um contrato social que, pela primeira vez em nossa história, consiga conciliar crescimento e distribuição em direção a uma sociedade mais inclusiva. Enquanto isso não acontece, nossa democracia seguirá incompleta.