Navios retratam a globalização no porto de Santos na véspera do século 20

O transporte de mercadorias e passageiros por via marítima é um dos aspectos mais visíveis da expansão econômica mundial durante a chamada primeira globalização. Foi o que aconteceu desde meados do século XIX com o porto de Santos em meio ao crescimento excepcional da exportação de café, que trouxe enorme aumento do comércio de todo tipo de mercadorias e a intensificação das relações com portos de várias partes do mundo e de outras regiões do Brasil. Uma boa ilustração encontra-se na tabela (ver no link a seguir ou no final do post) com o movimento de embarcações em Santos nos anos de 1882-83 (fonte: Relatório do Contador do Tesouro Provincial, anexo da Fala do Presidente da Província de São Paulo em 1884).

Os dados da tabela referem-se às saídas de embarcações, o que implica que uma embarcação pode ter ancorado e partido mais de uma vez do porto de Santos no período. São muitos números, mas não deixa de ser instrutivo fazer algumas relações e perguntas a partir deles, como estas apresentadas a seguir.

– Com destino ao exterior, 95 dos 288 (33%) navios, todos estrangeiros, eram ainda a vela. No caso dos ingleses, 29 de 106 (27%), mais do que os alemães (13 de 90, 14%). Alemanha industrial emergente, mais moderna, explicaria o maior número de vapores? Já os noruegueses, 100% a vela (29), o mesmo para os dos Estados Unidos (com apenas cinco embarcações).

– A totalidade dos navios brasileiros (300) dirigiu-se para portos nacionais, com grande participação de embarcações a vela (125 contra 175 a vapor ou 42%).

– Os navios alemães para o exterior ficaram abaixo dos ingleses no total (90 contra 106), porém o número de vapores (77) foi igual, com os ingleses superando os alemães apenas marginalmente em tonelagem. Dúvidas que surgem: e o domínio inglês do comércio marítimo, não se verificava no tráfego de Santos? Será que o mesmo se observava no porto do Rio, então o maior do país?

– Apenas cinco navios dos Estados Unidos participaram do comércio exterior, e um do comércio interno, ficando atrás do número de embarcações inglesas, alemãs, francesas, norueguesas, italianas, portuguesas, e igual ao das belgas. O tráfego de mercadorias e passageiros com navios da potência emergente era tão diminuto com o que viria ser o centro mundial do café, ao contrário da outra potência emergente, a Alemanha, tão distante das Américas?

– Dos navios estrangeiros, principalmente ingleses (47) e noruegueses (29) embarcavam para portos nacionais. No caso dos noruegueses, todas as embarcações eram a vela (e exatamente 29, o mesmo número de navios para o exterior). Surpreendente a participação dos noruegueses no tráfego de Santos? Por que só embarcações a vela? Daqui em diante, precisamos lembrar então que, nesta época, os noruegueses ficavam só a dever aos ingleses no comércio interno a partir de Santos, em número de embarcações e tonelagem.

– Os portos estrangeiros de destino foram principalmente os europeus, mas Nova York aparece em terceiro lugar com 40 embarcações. Ou seja, apesar da pequena participação de seus navios, o fluxo de comércio e passageiros para os Estados Unidos era substancial.

– Em termos de procedência do exterior, a região do Prata se destaca, com parte expressiva dos navios saindo do sul e parando em Santos antes de seguir viagem –intenso comércio com o Cone Sul, portanto.

– Entre os portos nacionais, o comércio de Santos com o Rio de Janeiro dominava absoluto. Em segundo lugar vinham os portos das províncias do sul, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, que somados chegavam perto do Rio de Janeiro. Também apreciável foi o número de navios deslocando-se de e para Pernambuco (12 e 44, respectivamente), disparado o principal centro do comércio de Santos com a região nordeste.

– O tráfego com os portos de Santa Catarina foi grande: considerando a procedência, Tijucas (16 viagens), Itajahy (14), Santa Catarina (2). Parece que São Francisco é o porto de São Francisco do Sul, que teve 31 viagens desta origem; Cambriu seria a vila de Camboriú (4 viagens) (?). E Barra Velha, será a localidade ao norte de Florianópolis que era centro da pesca de baleia? Se estiver correto, são então 68 viagens para Santos.

– Esses números de Santa Catarina superam bastante os dos portos do Paraná (Paranaguá, com 19; Guaratuba, com 12). Algo equivalente ocorre com os portos de destino. Quer dizer que Santa Catarina tinha todo este comércio com Santos? Ou seus portos eram entrepostos de embarcações vindas de outros lugares (caso os dados registrem o último porto antes da chegada a Santos)?  Se os portos forem esses mesmos, o tráfego de Santa Catarina seria até maior do que o dos “Portos do Sul” (60), que parecem um agregado de todos os portos da região sul, sem identificação individual. Não deve ser do Rio Grande do Sul apenas, porque “Rio Grande do Sul” (5 viagens) aparece separado. O agregado também não parece incluir os portos do Prata, pois Montevidéu, por exemplo, aparece na estatística dos portos estrangeiros.

– Na arrecadação de tributos, em termos absolutos, a maior contribuição veio dos navios ingleses, com os alemães em segundo (5,6 contos de réis x 4,1 contos); mas a contribuição relativa, por embarcação/saída, dos navios alemães foi razoavelmente maior (42 mil-réis x 37 mil-réis por embarcação/saída) do que a dos navios ingleses. Por nacionalidade, parece que a maior contribuição relativa foi dos navios franceses (44 mil-réis).

– Por outro lado, a contribuição dos navios brasileiros para as receitas provinciais foi ínfima, em termos absolutos e relativos: apenas 0,9% do total arrecadado com as embarcações, contra 40% dos ingleses, 30% dos alemães, 11% dos franceses e 10% dos noruegueses, por exemplo. Então o “imperialismo” comercial europeu ajudou a financiar os gastos públicos em São Paulo? Os fazendeiros de café, que nada pagavam de imposto sobre suas propriedades ou outros ativos, devem ter agradecido.

Porto de Santos em 1882-83
Tabela – Saída de embarcações do porto de Santos em 1882-83